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Histórias do Alvito – A VELHA MESA DE MADEIRA

Histórias do Alvito
A VELHA MESA DE MADEIRA
Quando criança e até muito depois, o Menino nunca ligou para o mundo dos objetos. Sempre sentiu indiferença e até desprezo por roupas e calçados. Quando a mãe levava ele e sua irmã para fazer compras em Copacabana, ficava do lado de fora, recusando-se a entrar na loja e já escolhendo na vitrine o que depois iria apontar à mãe de maneira definitiva para ter que passar pouco tempo dentro do estabelecimento comercial.
Seu brinquedo preferido era a bola, mas como era proibida no prédio, sublimou esse amor jogando intermináveis campeonatos de futebol de botão em que cada um representava um jogador e as mesas tinham nome de estádios. Sim, podemos dizer que esses pequenos discos de galalite foram os objetos que ele mais amou no seu tempo de menino.
Com diz Diadorim: “A vida da gente faz sete voltas, a vida nem é da gente…” O Menino cresceu, virou professor, casou, separou, casou de novo e de novo separou. Mudou de casa tantas vezes que uma bem-humorada secretária do Departamento gostava de chamá-lo de cigano e no início do ano sempre lhe perguntava:
— Para onde você está se mudando agora, Alvito?
Botafogo. Botafogo bis. Lagoa. Niterói. Atenas. Tijuca. Botafogo tris. Jardim Botânico. Jardim Botânico 2. Ipanema. Oxford. Petrópolis. Rocha. Santa Teresa e Blumenau dão razão a ela.
Em todas essas mudanças ele trouxe pouco mais do que os seus livros. Só fez questão de trazer consigo um objeto: uma velha mesa de madeira, marchetada, com duas gavetas, uma delas já desprovida do puxador de argola. A boa madeira está toda arranhada, manchada, desbotada. Cheia de cicatrizes do tempo. Mas segue firme.
Não sei de que madeira é feita, mas só posso agradecer às árvores de onde veio seu corpo. Depois do desleixo de criança só a tratei com muito carinho. Adoro observar seus detalhes de marchetaria e deslizo a mão em sua superfície com a alegria de quem conversa com uma amiga.
O detalhe importante é que ela é daquelas mesas que se abrem. De um lado é estreita e retangular. Era ali que o Menino estudava, nessa brincadeira de aprender que entusiasma a ele até hoje. Mas, feitos os deveres, a mesa se abria em duas partes que logo viravam um improvisado campo de futebol de botão.
Mais do que uma recordação querida da infância, a velha mesa de madeira representa e dá conta dos seus dois lados, tão interligados quanto as duas partes de madeira: a seriedade profissional obsessiva e a busca incessante do prazer.
Adivinhem onde está pousado o computador no qual ele escreve este textinho? É também onde há uma foto do filho na praia, o marcador de livros com a assinatura da sua mãe, uma caneca com a foto da filha sorrindo, uma foto da irmã mais velha que se foi e uma foto dele quando era lourinho.
Nas gavetas? Há segredos que ele não pode revelar.
Só a mesa, esta velha companheira, é que sabe de tudo.
EM MAIO: Cem anos de solidão (2as. feiras, 19-21h)