Histórias do Alvito
AVENTURAS DE UM FOLIÃO DE POLTRONA
Juro que já fui um folião exemplar de sair atrás dos blocos empunhando um pandeiro. Até já cantei samba enredo em um desfile do Bagunça meu coreto, com direito a bateria e tudo. Não quero me gabar mas fui vocalista do inesquecível Raça Ruim. Fiz até um samba, um só, ruinzinho, mas fiz. Se não me engano, escrevi um livro com histórias do samba. E vivi meu momento de glória carnavalesca: vestido de mulher (feia demais), com peruca e vestido vermelho, sentei no colo do motorista do 572 – Glória-Leblon.
Mas agora moro em Blumenau, onde há exatamente uma pequena escola de samba, que desfila na segunda feira de Carnaval e olhe lá… O comércio ignora os festejos de Momo, tudo funciona. A grande festa da cidade, regada a muita cerveja, é em outubro. Até se tocam algumas marchinhas, em alemão…
Sendo assim, neste ano fui um perfeito folião de poltrona. Não é qualquer poltrona não, é minha poltrona de leitura, em frente a meu amado jardinzinho. É meu cantinho preferido em uma casa que adoro. Bem, pasmaceira total, dirão vocês e estão redondamente enganados, pois o inesperado pode acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar.
Vou contar como foi. Passei a segunda-feira de carnaval no animado (ma non troppo) bloco do eu sozinho. Depois do exercício, estudei um pouco de alemão, porque não pode haver nada mais exótico do que estudar alemão em meio à folia geral. O Menino adora fazer o que ninguém espera que ele faça, chama isso de liberdade.
Ouvi um pouquinho de Belchior e em seguida, resolvi me dedicar às leituras. Comecei relendo Dom Casmurro para o curso (em andamento) Três vezes Machado. Fiquei algumas horas lendo, marcando e refletindoo acerca de certas passagens. Mas eu gosto de misturar leituras e a segunda leitura, iniciada mais perto do entardecer, é sempre totalmente diferente. Posso ler Proust de manhã e terminar o dia com um romance policial.
Desta vez foi algo ainda mais divergente, assim pensava eu: uma biografia de Freud por Elisabeth Roudinesco. Reparem que nunca estudei psicologia, li aqui e ali alguma coisa de Freud e como faço análise há alguns anos, achei interessante mergulhar na vida do inventor da psicanálise.
Vocês não vão acreditar, mas nos primeiros capítulos encontrei muitas semelhanças entre o ciumento Bentinho e Freud. Por exemplo? Ora, todo mundo sabe que Bentinho era filho único, adorado e idolatrado por Dona Glória, que desejava que ele fosse padre para cumprir uma promessa mas ao mesmo tempo ficava apavorada que essa hora chegasse. Sigmund Freud, filho primogênito, não era menos amado por Frau Amalia, que o chamava de “meu Sigi de ouro” e estava convencida de que se tornaria um grande homem. Para terem ideia: o filhinho adorado dormia sozinho em um quarto com lampião enquanto as suas cinco irmãs dormiam juntas à luz de velas.
O tópico do ciúme então… Publicamente, Sigmund defendia a liberdade das mulheres, tendo até traduzido um volume de Stuart Mill dedicado ao tema. Uma parte importante da sua obra será acerca da questão da repressão que a sociedade impõe aos nossos desejos. Na prática, porém, a teoria é outra. O jovem Freud se apaixona por Martha Bernays e os dois ficam noivos secretamente, decidindo adotar a castidade pré-nupcial. Freud ainda não se formara em Medicina, portanto não era possível casar com Martha naquele momento.
Foi preservada uma enorme correspondência amorosa entre os dois, que nos permite saber, nas palavras de Roudinesco que nas cartas ele “mostrava-se alternadamente tirânico, impetuoso, ciumento, melancólico (…) e capaz de elaborar planos minuciosos de vida cotidiana”. Queria que sua futura esposa fosse “sua doce princesa, aquela a quem se oferecem mil presentes e roupas elegantes”. Para isso deveria se restringir a cuidar do lar e dos filhos.
Freud duvidava do amor dela e morria de ciúmes a ponto de se ofender por Martha ter visitado uma amiga que tivera relações com o noivo antes do casamento. Controlador, vigiava a saúde da noiva, seu peso e até o tom pálido da sua pele. Novamente me valendo de Roudinesco: “o estado amoroso e a abstinência deixavam-no insuportável, despótico e irracional”. Não é pouca coisa.
Assim que se casam, Freud proíbe Martha de celebrar os rituais judaicos e de cozinhar segundo as regras kosher. Eles tiveram seis filhos, mas, logo depois, assolado pela impotência eventual e preocupado como os perigos que a gravidez impunha à mulher, Freud renuncia ao sexo. Desfrutou dos prazeres da carne por somente nove anos e a partir daí teve apenas inúmeros sonhos eróticos que não deixava de analisar.
Neste ponto, Bentinho o supera claramente. Depois que exila Capitu e seu filho de maneira covarde na Suíça, nunca deixa de ter suas amantes, nenhuma delas capaz de preencher o vazio do seu grande amor.
Às vezes, até um gênio e um canalha têm algumas semelhanças entre si.
E tudo isso aconteceu na minha poltrona, acreditem.
Foi mais emocionante do que sentar no colo do motorista.
EM MAIO: Lendo Cem anos de solidão (inscrições abertas)