/HISTÓRIAS DO ALVITO – Batatas cozidas com azeite e sal e uma camisola branca

HISTÓRIAS DO ALVITO – Batatas cozidas com azeite e sal e uma camisola branca

Histórias do Alvito 
BATATAS COZIDAS COM AZEITE E SAL E UMA CAMISOLA BRANCA
Se fizessem um ranking dos autores que mais são citados sem serem lidos, sem dúvida Guimarães Rosa ocuparia o primeiro lugar: há um intenso comércio de frases de Grande sertão: veredas sem atentar para o contexto. Mas em segundo lugar, honrosamente, viria Marcel Proust com a tal história da madeleine, o famoso bolinho em forma de concha mergulhado no chá de tília.
É comum ouvir as pessoas dizerem coisas como: este gorro é minha madeleine, me lembra um inverno muito frio que passei em Friburgo. Não é madeleine não. É um objeto que traz uma recordação. A madeleine é outra coisa. Seria madeleine se a pessoa colocasse o gorro na cabeça e sentisse novamente o ar gelado…
Para Proust, a madeleine desperta uma “memória involuntária”, em um processo que não começa na consciência e sim nos sentidos. No caso do protagonista e narrador do livro há vários momentos em que isso ocorre, sempre de forma inesperada: a audição de um trecho musical ou o ruído de uma colher no prato, a visão de duas pedras irregulares no calçamento … enfim, situações que permitem a ele não relembrar e sim reviver o passado.
Podem não acreditar, mas aconteceu comigo. Para jantar eu tinha uma salada caprichada que quis turbinar fazendo umas batatinhas cortadas em pedacinhos, cozidas e depois recobertas por azeite e sal. O sabor me transformou para a casa da minha avó Isaura.
Lembrei dela de cabelinho branco na forma do que seria black power não fosse ela portuguesa. Sentada na sua poltroninha inseparável onde não se cansava de ver televisão. Ouvi a voz dela a dizer, rindo: — Pára, meu neto, pára, quando eu a cobria de beijos estalados. Vi ela andando pela casa de chinelinha e camisola branca.
Vovó Isaura era de uma simplicidade e de uma bondade comoventes. Fazia tudo pelos outros e para ela exigia muito pouco ou quase nada. Não era grande cozinheira, ao contrário de mamãe, mas caprichava no peixe com batatas cozidas com azeite e sal.
Que tinham exatamente o sabor que experimentei no meu jantar.
Isso sim é uma madeleine.
EM MAIO: LENDO Cem anos de solidão
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