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Histórias do Alvito – Dois copos e um homem

DOIS COPOS E UM HOMEM

A mancha humana recheada de carne espalhava-se sobre a parte que lhe cabia neste latifúndio, a calçada de pedrinhas portuguesas. Suas unhas cobertas de sujeira eram longas e pontudas, combinando com a barba e os cabelos negros para lhe dar um aspecto meio soturno. Era um homem. Não lhe importavam as pessoas que passavam apressadas para ir ao supermercado ou à farmácia, fazendo suas compras matinais. Diante dele, havia dois copos de plástico, desses transparentes. Ambos vazios. Um virado para cima, outro para baixo. Yin Yang? Bem e Mal? Amor e Ódio? Vida e Morte?

Concentrado, tinha um cigarro pelo meio na mão esquerda. O indicador da mão direita em riste apontado para frente. Com o rosto crispado de alguém que se exalta com o próprio discurso, ele parecia repreender um dos dois copos, ou talvez os dois. Seriam duas crianças levadas? Dois amigos? Seriam seus animais de estimação? Reduzido a uma privação material absoluta, quiçá sofrendo de um dos muitos males à nossa disposição, ele fugira para o último refúgio do ser humano: a capacidade de simbolizar e de imaginar. Não importa que fosse um delírio. Naquele momento ele era muito mais humano do que quem ia comprar um saco de batatas para fazer o almoço.

Pois os animais, se não compram nem cozinham batatas, procuram alimento. Mas não são capazes de transformar dois copos em Romeu e Julieta. Não são capazes de transcender a prisão do real pela liberdade de criar e imaginar.