Pedestres que parecem kamikazes. Motoqueiros que são kamikazes. Um vespeiro de bicicletas entregadoras de tudo um pouco, com predileção por andar na contramão e sem capacete. Carrões cada vez maiores, tomando o dobro do espaço, como se o dinheiro tivesse comprado esse direito. Motoristas de ônibus que fazem Atila, o Huno, parecer um sujeito delicado. Táxis tão donos da rua que me intriga que não cobrem aluguel. Um Uber incomoda muita gente, dezena de milhares incomodam muito mais. E já ia me esquecendo dos skatistas, da turma do patinete, das bicicletas elétricas e… algo me diz que estou esquecendo de algo. Acho que não, mas estou preparado para ver uma carroça puxada por um dragão soltando fogo a qualquer momento, afinal eu dirijo no Rio de Janeiro.
Apesar da extrema concentração necessária para sobreviver a esta experiência radical, por vezes ainda me sobram alguns segundos para contemplar o que se passa na calçada e esta semana vi duas cenas, literalmente roubadas ao caos.
A primeira foi na bucólica e pacata Voluntários da Pátria, decerto os meninos se voluntariaram para escapar da hora do rush. Na calçada do lado esquerdo, mãe e filha caminhavam abraçadas. Ou melhor, a mãe caminhava firme e ereta feito estátua grega, enquanto a filha passava o braço esquerdo por cima do ombro da mãe. Mesmo sem poder ver o rosto da menina, que parecia ter aí os seus catorze anos, a forma como estava inclinada para a mãe me comunicou uma doçura, uma entrega amorosa, uma crença infinita em sua mãe. Não pude olhar para trás para ver o rosto das duas, mas imaginei que aquele momento é um destes em que somos felizes sem perceber, em que o encaixe da vida é perfeito, sem asperezas ou ruídos. Não pude deixar de imaginar também o que será das duas muito mais à frente, quando talvez seja a mãe que tenha que se apoiar na filha.
A outra cena foi igualmente breve e meus olhos a registraram hoje à tarde, na Tijuca. Era um senhor, cabecinha branca, parado majestosamente na calçada, de frente para os carros, esperando o bom momento para atravessar. Ele estava com uma bengala grossa que mais parecia um cajado. A segurava com ambas as mãos, como se ela fosse um pilar ou uma coluna. Estava muito bem equilibrado e tão seguro de si – ao contrário da imagem de fragilidade que a velhice sempre evoca – que não pude deixar de pensar na ilustração do Pequeno Príncipe e sua espada. Já passado da idade para ser príncipe, de qualquer forma ele me transmitiu a ideia de soberania.
Talvez o bom da vida seja isso: roubar um pouco de beleza e dignidade em meio ao caos reinante.