Histórias do Alvito
FALTOU UM
Na crônica sobre meus escritos (“Cada um bate o pandeiro como sabe”), deixei de lado, não sei se de forma consciente, um deles. Trata-se, vejam só que ousadia temerária, de um romance. Um romance narrado em primeira pessoa pelo protagonista: Jean-Baptiste Debret. Para mim, um dos primeiros a entender o que era e o que poderia ser o Brasil. Lá vai o capítulo 2, imploro que sejam gentis:
“A tristeza me faz companhia. Da hora em que o canhão me desperta até o momento em que desmaio na cama lendo à luz de velas. Neste lugar onde o diabo perdeu as botas e não fez questão de voltar para buscar, estou isolado, sem notícias do que vai no mundo. Sobretudo do meu mundo, que sempre foi Paris. Há por aqui, além dos meus colegas de barco, alguns imigrantes franceses interessantes. Vieram cozinheiros, dançarinos e cabeleireiros. E havia se radicado na Corte o holandês Hogendorp, antigo general de Napoleão, agora fazendeiro de café na Tijuca. A presença dele, dos artistas do Calpe e de outros bonapartistas deixou o embaixador francês no Brasil com os nervos à flor da pele. Tentava nos envenenar junto ao governo como fomentadores da subversão. Quem dera. Éramos apenas um bando de artistas tentando seguir com nossas vidas.
Sonhei que estávamos novamente reunidos. Claire, Honoré e eu, nós três vivendo nesse calor que amolece o corpo. Claire estava belíssima, o sol brincava nos seus cabelos vermelhos. Levava um vestido branco, rendado, como os usados pelas escravas de ganho. Descalça. Com aqueles pés brancos e gordinhos que eu adorava beijar, pisando a areia de uma praia daqui. Nosso filho voltara a ser aquele rapagão forte e animado, sempre feliz. Ele me pedia que nos embrenhássemos numa floresta, para pintar pássaros e plantas, e admirar a força da natureza tropical. Honoré também estava descalço. No sonho ele era negro. Não adianta pensar neles, de nada serve pensar em Paris. Tenho que viver nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Eu e meus fantasmas. Ao menos não posso reclamar da falta de luz. Nem do que pintar.
A situação vai melhorando. Além do salário anual de pintor de História, das encomendas de quadros e da decoração das festas reais, recebi mais uma incumbência. Fui nomeado cenógrafo do Real Teatro de São João, praticamente o único teatro da cidade. Fica no Largo do Rossio, não muito longe do Terreiro do Paço. Basta atravessar a Rua São José e seguir pela Rua do Piolho. Há ali uns quatro ou cinco espetáculos por semana, peças em português e óperas italianas. No dia em que conheci a casa, tive vontade de chorar. Não pelo aspecto físico do teatro, bastante razoável. Mas pela pobreza artística da orquestra, que mutilou sem dó nem piedade um libreto divino. Dentro do possível, as cantoras salvaram a noite. No apogeu dos seus dezessete anos, a Senhorita Faschiotti impressiona pela beleza. A voz está a se desenvolver, feito um pássaro que começa a levantar vôo. Seus talentos de atriz são minguados. Madame Sabine é uma mulher madura com mãos de menina. Domina o palco com técnica e sentimento. Há muito o que fazer e me sinto feliz por ajudar o Brasil a conhecer um pouco da civilização.
O resultado de tudo isso: a confortável casa no Catumbi onde vivo desde agosto do ano passado. Escolhi o bairro por vários motivos. É afastado da barulheira e da confusão reinantes no coração da cidade. Ao mesmo tempo, em menos de meia hora posso estar na rua Direita ou no Largo do Rossio. O Catumbi é cercado de matas e montanhas, um belo recanto com um clima um pouco mais ameno, sobretudo durante os cruéis meses do verão. Fico a meio caminho do palácio real. O meu trabalho obriga a um contato constante com o rei e sua família. Consegui esta casa por um bom preço e é grande o bastante para que eu disponha de um atelier digno. Onde estou pintando um quadro a óleo, retratando sua majestade.
Fui até São Cristóvão para desenhar o rosto do soberano. Pedir a ele para ficar imóvel durante horas foi uma tarefa fácil. Depois, contratei um homem daqui do bairro para posar com a vestimenta real, inclusive condecorações, espada, tudo. Felizmente, os anos de experiência pintando Bonaparte e suas conquistas me prepararam para ser o pintor da corte portuguesa no Brasil.
Saio bem cedo, logo depois do café da manhã. Retratar reis e suas cerimônias não me basta. Gosto de sentir o pulso da cidade. É suja, feia e barulhenta. Mas é a África inteira que corre feito um rio pelas ruas. Homem da revolução, que em França significou o fim da escravidão e a promessa de liberdade para todos, não posso me acostumar com o que vejo. Talvez por isso eu consiga olhar para estes negros e negras como o que são: homens e mulheres. Sento-me na calçada, debaixo deste sol que castiga tanto quanto o chicote. Abro meu caderno de desenhos e traço esboços do que vejo. Depois transformo em aquarela o que me parece relevante do ponto de vista artístico ou humano.
Nos primeiros dias, fiquei extasiado, sem saber o que desenhar. Chegam ao porto do Rio de Janeiro vinte mil escravos por ano. É como se fossem despejadas aqui dezenas de aldeias africanas. A metade ou mais da população da Corte é proveniente deste infame comércio de carne humana. Olhando-se com cuidado percebem-se fisionomias características de diferentes nações. Cortes de cabelo com desenhos de toda natureza, incisões no rosto e pinturas faciais de vários tipos. Sem falar na miríade de atavios: chapéus, gorros, turbantes, lenços, faixas, tiaras, cintos, mantas, anéis, panos, braceletes, véus, colares, brincos e os balangandãs das vaidosas escravas de ganho. As roupas também são surpreendentes, cheias de cores e por vezes consistindo de fardas estrangeiras rasgadas e outras vestimentas reaproveitadas. Com todos esses elementos, homens e mulheres fazem um bricolage único e original. Cada um deles quer se diferenciar fortemente dos outros, para que se esqueçam da condição comum de escravizados e reparem nele como uma pessoa com nome.
Não param de desembarcar novos africanos. Alguns deles, como os que vi nas ruas trabalhando, conseguirão reerguer-se do choque, da violência, do desespero. Aos poucos irão construir novas vidas. Já os vejo fortes, com suas roupas coloridas e muitos adereços que os individualizam. Prestam serviço, recolhem a moedinha na bolsa de couro e seguem caminho. Têm uma vontade de viver que invejo.
Os corpos esguios e elegantes das jovens negras contrastam com essas matronas brasileiras e portuguesas. Por aqui a mulher branca engorda assustadoramente assim que se torna mãe. Talvez o gosto local seja muito diferente de Paris, onde elas teriam até vergonha de sair de casa. Quanto aos negros, muitos dos quais trabalham como carregadores, são fortes e musculosos. Por vezes me lembram estátuas gregas que andam, suam e têm pele escura. Seus senhores são adiposos e vêem a preguiça como um privilégio da classe a que pertencem. Por aqui nenhum homem livre caminha carregando alguma coisa. A cada esquina há um pequeno grupo de negros pronto para alugar seus serviços. Pode ser um embrulho mínimo. Vi um simples carpinteiro mulato andando pela rua com as mãos abanando, enquanto atrás dele um negro carregava seus objetos de trabalho. O costume é tão enraizado, que os negros de ganho ficam enfurecidos se alguém não os contrata e ousa valer-se das próprias mãos.
Outros cativos, todavia, vão ficar pelo caminho. Foram estas ruínas humanas que forneceram os primeiros desenhos a meu caderno. Homens e mulheres sem nenhuma esperança no olhar, que já não se debruça sobre as coisas deste mundo. Sentados no chão, abraçando as próprias pernas, desconsolados. Não comem, não lutam, se deixam morrer feito um vaso furado de onde a água da vida escorre até o vazio. É o que chamam de banzo, uma melancolia mortal, um suicídio lento. Fedem muito. Têm a pele aberta por feridas que nunca curam. Vestem uma tanga ou um calção, alguns nem isso. Diante desse espetáculo dantesco, não entendo como alguém possa defender a escravidão.
Meus companheiros de viagem e de infortúnio reuniram-se o dia inteiro em um café perto do porto. A comida e a bebida são de péssima qualidade – esta terra não fabrica nem mesmo a própria manteiga ou um mísero queijo. O estabelecimento vive coberto por uma nuvem de moscas, o que é comum. Tudo isso, somado ao temperamento fechado, fez com que evitasse esta assembleia de artistas exilados. Preferi sair às ruas desta nova África.
Nada explicita melhor a posse absoluta representada pela escravidão do que o direito de seu senhor lhes dar um novo nome, que dizem cristão. Como se fosse de acordo com a religião o tratamento que lhes é dado. Fica em mim a imensa curiosidade em saber qual o nome verdadeiro de cada um e o significado em sua língua. Abordá-los não é fácil. O português sofrível e cheio de sotaque francês que falo é tolerado pelos brancos e visto como sinal de distinção. Para negros e negras é uma estranheza a mais. Sua primeira aposta é que eu quero contratar-lhes o serviço. Para carregar minhas coisas, ou então para comprar um quitute, uma bebida. Em algumas jovens escravas notei ainda a existência de outras possibilidades, que considero vis. Não se deve tentar comprar o que não pode ser comprado.
Um dia, tomei coragem e abordei um negro majestoso com um cesto vazio debaixo do braço. Era um sinal de que havia vendido toda a sua mercadoria. Achei que estaria disposto a conversar.
— Bom dia.
— Bom dia, sinhô – respondeu ele, imediatamente baixando a cabeça.
— Como é seu nome?
— Bento, sim sinhô.
— Mas e o seu nome de verdade?
— Bento, sim sinhô.
A conversa tinha chegado ao seu limite quando ele apareceu. Um negro franzino, de baixa estatura, vestido de forma humilde mas aceitável e com os pés metidos em sapatos. Dirigiu-se a mim em francês e me perguntou se eu precisava de ajuda para conversar com o carregador. Mal consegui balbuciar um sim. Em seguida começou a conversar com Bento em uma língua africana. Após dois ou três minutos, antes de se apresentar, contou o que conseguira arrancar do outro. Era um moçambique de nome Erasto, que significa homem de paz na sua língua. Disse que nunca mais tivera paz desde que o homem branco jogara uma rede sobre ele como se fosse um bicho. Era um escravo de ganho que vendia galinhas. Em um dia bom conseguia pagar sua diária ao senhor e ainda guardar algumas moedas. Nos dias ruins, pagava as moedas que faltavam com o couro a comer-lhe a carne das costas. Tinha entendido a pergunta feita pelo branco mas teve medo de responder, pois seu senhor disse que só queria ouvir o nome cristão. Os nomes pagãos não deveriam mais ser pronunciados.
Depois que Erasto foi dispensado com um agradecimento e uma moeda, virei-me para o tradutor inesperado. Ele mesmo se apresentou. Chamava-se Sebastião. Trabalhava para estrangeiros, sobretudo naturalistas. Servia de guia, mostrando os caminhos da mata e facilitando a busca de espécies animais e vegetais. Fora assim que aprendera francês. Afirmou também conhecer suficientemente bem o inglês e um pouquinho de alemão. Apesar de ser muito bem pago, estava procurando um trabalho mais tranquilo na cidade. Começava a achar cada vez mais cansativas as excursões pela floresta, levando uma carga que era pesada na ida e ainda mais no retorno.
Era uma oportunidade de ouro. Eu tinha apenas uma servidora, uma escrava velha que o proprietário me alugara juntamente com a casa. Dispensei a palmatória que ele me havia oferecido como parte da mobília. A pobre mulher, já sem dentes, fazia a limpeza, as compras de mercado e algumas das minhas refeições. Encurvada, cheia de dores, falando e resmungando sozinha, pensei que Dona Esmeralda fosse uma velha. É dois anos mais nova do que eu. Mas sofreu na pele a escravidão. Não são muitos os escravos e escravas que chegam a ultrapassar a barreira dos cinquenta anos. Quando o fazem estão aos pedaços. Têm que escapar do trabalho pesado, dos castigos e maus tratos, das péssimas acomodações, da má alimentação e de inúmeras doenças. Dona Esmeralda não para nunca de cantar baixinho, em língua africana, enquanto executa suas tarefas. O que eu não daria para saber o que dizem essas canções.
Sebastião emprestaria mais vida à casa. E poderia ser um auxiliar inestimável no projeto de conhecer os costumes dos negros. Ademais, agradava-me o fato de que fosse um homem livre. Tive certeza do valor de Sebastião no domingo. Eu não teria coragem de ir lá sozinho. Há muito que desejava ver a festa dos negros.
É onde a cidade termina, nesta margem entre a civilização e a barbárie. Em um descampado, ocorre algo mais africano do que a África.
Estive com o Conde dos Arcos, último vice-rei antes da chegada da Família Real. Soube que a permissão para o batuque servia a vários fins. Suavizava as saudades de África e as agruras da escravidão. Além disso, reacendia as rivalidades entre as nações, que através da música dos tambores relembravam suas diferenças. A desgraça tem o poder de unir os desgraçados. Nas palavras dele:
— Se os do Congo vierem a ser irmãos com os Benguela, os Moçambique com os Mina, os Rebolo com os Jinga, e assim os demais, grandíssimo perigo assombrará o Brasil. Teríamos uma revolta incontrolável.
Aqui há mais medo no ar do que pássaros. A massa dos negros vive a temer a palmatória, o chicote, os grilhões, a prisão e a miríade de castigos que seus senhores são capazes de inventar. O mundo criado pela escravidão não poderia ser diferente. O outro lado da moeda, se preferirem o outro lado da lua, aquele que fica na sombra, é o medo sentido pelos brancos. Depois do que aconteceu em São Domingos, há um verdadeiro pavor de que ocorra uma revolta dos negros nesta cidade onde eles são maioria. Aqueles que são chamados de Sinhô e Sinhá acordam e dormem sem desfrutar da paz. Penso que não é possível que desconheçam o oceano de dor em que navegam suas vidas privilegiadas. Para que possam ignorar a realidade, são obrigados a um embrutecimento que diminui a sua humanidade. O uso do chicote não endurece somente as mãos, mas a alma.
Ao chegar no lugar onde os negros se reuniam, fiquei sobressaltado. Sete círculos, cada um com centenas de homens e mulheres. Mais do que forte, o som dos tambores percutia dentro do meu corpo, tomando-o de assalto. Sebastião, discreto como sempre, sorriu diante da reação que eu demonstrei. Logo se aprumou e me explicou, como um professor:
— Patrão, um círculo representa uma nação. Cada grupo canta suas músicas, todos acompanhando na palma das mãos. Além dos tambores, há cabaças servindo de chocalho. Tudo é coordenado por um mestre de cerimônias, um homem como aquele, que parece um curandeiro e está com uma varinha na mão. A função dele é não deixar o entusiasmo diminuir. Nenhum grupo quer parecer menos animado. Isso seria uma grande vergonha.
Nos aproximamos de um dos círculos, segundo Sebastião composto por negros e negras da nação rebolo. Gente do rio Cuanza, em Angola. No centro da roda havia oito ou dez dançarinos endiabrados, contorcendo o corpo de forma animal, em uma dança que nascia dos quadris. Um homem e uma mulher se aproximavam e simulavam um choque dos sexos com uma sensualidade furiosa. Aqui e ali se ouvia um grito que cortava o céu ao meio. Quem tinha gritado entrava na roda e aquecia ainda mais aquela fogueira humana. Os tambores soavam mais alto e a plateia enlouquecia. Era uma aldeia negra dentro da cidade branca.
Ali vi uma moça que parecia uma rainha empertigada e solene. Do seu corpo só faltava sair fumaça. Portando um vestido branco, um pano da costa azul e um turbante vermelho. Mais elegante e formosa do que uma nobre da corte dos Bourbon. Os olhos estavam fechados. Concentrava-se na dança, em transe. Os pés movimentavam-se em contato com a terra ao ritmo do tambor. Esquecida de tudo, transportada pelo som para um outro lugar.
Livre.”
Imagem: Jean-Batiste Debret, Escravo sentado nu, esboço do caderno de viagem.