/HISTÓRIAS DO ALVITO – O padeiro implacável

HISTÓRIAS DO ALVITO – O padeiro implacável

Moro em Santa Teresa, em uma rua que pode mudar da calma de uma cidade do interior para um caos de carros, motocicletas e ônibus. Para apreciar o carnaval, basta ficar à janela vendo passar as pessoas fantasiadas e mesmo sem olhar ouvem-se conversas de toda a natureza. Há grupos subindo animados, em meio a gritos e brincadeiras. Ou descendo,  na volta nem sempre tão alegre. Casais discutindo a relação para todos ouvirem, talvez na esperança de que alguém solucione o que não tem solução.  E a mais tradicional fantasia, a do bêbado chato e inconveniente, com perdão da redundância.

Minha rua também espelha o Brasil que vivemos e dia após dia, de manhã bem cedo até bem tarde da noite, posso ouvir os sons daqueles que vivem catando a parte que lhes cabe neste latifúndio.

Fico muito em casa, estudando, lendo, escrevendo. Não há nada mais incômodo para a atividade intelectual do que o barulho. Curiosamente, nenhum dos barulhos que descrevi me irrita. Eles me incomodam, me atrapalham. Mas sei que fazem parte do cenário urbano e do local onde moro.

Comecei a ficar realmente irritado com a buzina do padeiro. É um sujeito baixinho, arredondado, bom para um simpático comercial de cerveja. Vende o pão nosso de cada dia em sua bicicleta, à frente da qual há um cesto com as mercadorias. Sobe a rua buzinando sem parar. Dá para escutá-lo muito antes de virar a curva que antecede o meu prédio. E também centenas de metros depois de passar pela minha janela. É um som desagradável, feio e insistente. Mas hoje eu descobri que a minha irritação não vem daí.

É que ao passar todos os dias, no fim da tarde, este padeiro implacável acaba por me lembrar que já gastei mais um dia. Sua buzina se transforma numa sirene, palavra que vem de sereia, apenas mais uma versão do monstro que nos devora: o tempo.