O PAPEL DO GUIEIRO, ou como NÃO dar aula sobre Grande sertão: veredas
Em 2016, quando comecei a dar aula sobre Grande sertão: veredas, eu sabia muito mais coisas sobre o livro, tinha muito mais certezas, não conseguia responder a todas as perguntas mas conseuguia fazê-lo para muitas delas. De lá para cá, desaprendi de ensinar o livro, tendo como primeira e última lição que “o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” Tive que me desconstruir como professor para poder virar guieiro.
O termo não comparece em Grande sertão: veredas. Em Sagarana, embora a palavra apareça somente três vezes, há dois guieiros que têm papel importante na narrativa. Na novela de abertura, “Burrinho pedrês”, Zé Grande é o poderoso guieiro da boiada que está sendo levada para embarcar nos vagões especiais da estrada-de-ferro. Era um homem que tinha “a sabença do gado”, era o melhor vaqueiro da fazenda, capaz de “ler” os bois, cujas manias e temperamentos ele conhecia, um a um. Adivinhava ataques de touros furiosos e avaliava momento a momento como estava o ânimo do rebanho. Indo à frente, Zé Grande soprava o berrante, abria o caminho e regulava a velocidade da marcha. Com esse instrumento, podia comunicar, através de toques diferentes, uma série de ordens: o suave despertar da boiada, o aviso de um perigo ou, até mesmo, a hora tão esperada do almoço.
O outro guieiro que frequenta as páginas de Sagarana é bem mais modesto. Trata-se do menino guia Tiãozinho, que vai à frente de um carro puxado por quatro juntas de bois, oito animais, cada um com seu nome e características próprias: Buscapé e Namorado; Capitão e Brabagato; Dançador e Brilhante; Realejo e Canindé. Munido de uma humilde vara, pés metidos em alpercatas de couro cru, ele vai escolhendo o melhor caminho, sob as ordens férreas do mal-encarado carreiro Agenor Soronho. Eventualmente, cabe a Tiãozinho fazer os animais pararem ou se acalmarem, aumentarem ou diminuirem o passo.
Enquanto guieiro do curso LENDO Grande sertão: veredas, me sinto bem mais próximo do menino guia do que do majestoso Zé Grande. O meu papel é ajudar alunos e alunas, meu bando de jagunços rosianos, como gosto de chamá-los. Ajudá-los, em primeiro lugar, a aprender a ler o livro em voz alta, no ritmo apropriado, com a música que Rosa infundiu em cada parágrafo. Assim, caminhamos com humildade, alegria e coragem, sempre dispostos a aprender e a sermos surpreendidos pela magia da escrita de João Guimarães Rosa. Este guieiro busca orientá-los para que não se percam no Pântano narrativo e seu caos cronológico. Desembaraço o caminho dos termos desconhecidos também. Por fim, minha intenção última é dar a eles todas as condições para que possam construir uma interpretação própria do livro, pois ele é recriado a cada leitura, à medida em que meus jagunços e jagunças não somente o lêem mas também são lidos por ele.
Durante a travessia, de início leio e comento cada passo. Na etapa seguinte, a leitura passa a ser responsabilidade da turma, o momento em que eles terão um outro tipo de contato com o texto, sentindo melhor sua textura e sabor. Por fim, os jagunços e jagunças da turma também interpretam os passos. Às vezes há grandes questões, do tipo: “Zé Bebelo queria ou não queria trair o bando na Fazenda dos Tucanos ?” ou “Riobaldo fez ou não o pacto com o Diabo?”. Quando é assim, aponto elementos que fortalecem uma e outra hipótese, alternadamente. Para que o bando faça o seu próprio julgamento, encerrado com uma votação. É um momento muito rico em que todos aprendem com todos, um caleidoscópio de opiniões e avaliações. Eu não dou meu voto, para não influenciar nem causar a impressão errada de que alguns acertaram e outros erraram.
Há, todavia, uma enorme diferença entre o guieiro e o guieiro literário de Grande sertão: veredas. O guieiro de uma boiada ou de um carro-de-boi sabe exatamente onde chegar, onde finda o seu caminho. No caso da obra-prima de Guimarães Rosa, o que o guieiro literário tem que fazer é iniciar os novos leitores e leitoras em uma travessia que irá durar a vida toda.
É essa jornada que (re) começa hoje. Tenho muito a agradecer aos cinco bandos de jagunços literários que antes fizeram essa travessia comigo, com os quais muito aprendi, além de compartilharmos momentos prazerosos de transe rosiano.
A minha alegria é tanta que até dá vontade pegar emprestado o berrante de Zé Grande e dar o toque de
“Solta!”…