OS TRÊS LADOS DA MOEDA
Cena 1.
Metrô vindo da Zona Sul na direção da Tijuca. Seis rapazes aparecem no vagão. Cinco são histórico-sociologicamente negros, um, histórico-sociologicamente branco, o mais baixinho e atarracado, os outros são espigados, elegantes. Do nada, sem música e sem aviso, apenas de olho nas paradas para evitar os guardas do metrô, um a um eles dançam o break. Começam sempre de pé, com passos que podem até lembrar o samba, mas que servem para ir criando uma espécie de ritmo de movimentação espacial, quase que preparando a nós, a platéia, para o que vem a seguir. Porque o que vem a seguir é uma explosão de inacreditáveis rodopios no chão, por vezes de cabeça para baixo, em movimentos rápidos, perfeitos, de um contorcionismo plástico e sem esforço, que flui e encanta. Ao final, na hora de passar o chapéu, um deles recolhe as contribuições, agradece a todos, pede desculpas pela intrusão, deseja aos passageiros tudo de bom, saúde e paz. Mas acrescenta um toque sutil e poderoso: este ano é ano de eleição e cabe a nós pensar bem nos nossos candidatos. Para que as coisas possam mudar. Ele e seu grupo saem de cena debaixo de palmas cheias de energia e admiração.
Cena 2.
Desço do metrô e pego um táxi no ponto para completar a viagem até a minha casa em Santa Teresa. O motorista é historico-sociologicamente branco e velho, assim como eu. Não sei como a conversa caminhou para ali, ele disse que morava em Niterói, falei que havia dado aula em Niterói, no Departamento de História da UFF. Logo ele assumiu um tom de escárnio e perguntou:
– Havia muitos makcistas lá no seu departamento?
– Eram a minoria. E se o senhor quer saber, embora eu não seja marxista, as pessoas mais corretas e éticas do departamento eram os marxistas. Ao contrário dos outros, nunca me perseguiram por pensar diferentemente deles. Ademais, Marx está para a História assim como Einstein para a Física, não há como estudar História e não estudar Marx, não é questão de doutrinação, é questão de formação.
Em seguida, ele tentou atacar por outra via. Um carro atravancou a rua, com dificuldades para fazer uma manobra e entrar numa garagem. Impaciente, ele despejou:
– Deve ser uma mulher…
Quando passamos olhei quem era e disse:
– Era um velho.
– Mas eu sou velho!
– E eu também. Era uma pessoa como nós.
Cena 3.
Vou a uma escola municipal na região metropolitana do Rio na qualidade de fotógrafo improvisado, acompanhar o trabalho de uma escritora e contadora de histórias para crianças e adolescentes. A escola fica em um morro, coalhado de casas humildes mas de forma alguma miseráveis. Não há tráfico, não há pessoas armadas pelas ruas, o ambiente parece tranquilo. Depois de transpor o característico portão de ferro estilo penitenciária, ingressamos na escola. A professora que nos recebe, historica e sociologicamente branca e de classe média, logo vai avisando que as crianças dali são carentes economicamente, socialmente, de afeto e de muitas outras coisas. Tenho certeza de que ela disse isso com a melhor das intenções possíveis, mas não deixa de ser curioso que uma educadora defina seus estudantes não pelo seu potencial de transformação mas sim pelos seus condicionantes externos.
Como era de se esperar por conta da nossa perversa História, a maioria absoluta das crianças eram histórico-sociologicamente negras. Prestando um pouquinho de atenção era fácil perceber as marcas de uma condição de baixa renda: tênis de sola rasgada, camisas furadas e em muitos um ar de criança pouco cuidada, o que se podia perceber nos cabelos e por vezes nos olhares. Algumas crianças tinham olhares perdidos, não era tédio, era o que eu interpretei como um ar de desesperança, de sofrimento continuado. Mas quando começou a contação de histórias tudo mudou. A contadora era uma artista muito experiente e variava sua estratégia de acordo com a faixa etária das turmas. Para os maiores, da 4a. e 5a. série, a história de uma menina questionadora e outra acerca de um amor que acaba não dando certo. Para os menores, histórias contadas com a ajuda de fantoches, que quando apareceram fizeram as crianças quase que voarem na direção da contadora. Dezenas e dezenas de crianças vieram abraçar a contadora após o término das sessões. Ao invés de carência, prefiro perceber estas crianças pelo que são: seres humanos em formação que poderiam se transformar no que quisessem caso fossem bem cuidados e tivessem acesso a uma educação acolhedora e transformadora.
A escola era claramente organizada, minimamente limpa e estruturada, com alguns equipamentos. Mas era feia e se podia respirar o desleixo e o desprezo pelas classes populares nas paredes sujas e no ambiente árido, que se assemelha mais a um depósito de crianças do que ao que deveria ser uma escola. Não estou culpando a direção, que pelo jeito faz o possível, e sim a falta de um projeto de transformação da sociedade brasileira que inescapavelmente passa pela educação. Cada uma daquelas crianças é um passaporte para um Brasil melhor. Ou não…
Por isso a moeda tem duas faces mas três lados. Porque a borda da moeda é aquilo que faz a ligação entre uma face e outra. Vamos continuar a ser o país racista, conservador, machista e retrógrado do motorista de táxi da Glória ou vamos ser o país dos jovens capazes de criar a sua própria arte, conscientes da necessidade de participação política?
Tudo depende do que virá a acontecer com as crianças em nossas escolas.
Iremos olhar para elas com uma falsa compaixão ou com a alegria de vê-las como a possibilidade de um mundo novo ?
Vejo a passagem de um filme realista nas palavras do Professor e penso nas escolhas que estamos fazendo e que formam o tecido da nossa história… Lamento!