/HISTÓRIAS DO ALVITO – Saudades do Zé

HISTÓRIAS DO ALVITO – Saudades do Zé

SAUDADES DO ZÉ

Apolo, um enorme pastor alemão de pelo brilhante, olhava para o seu dono com curiosidade. Afinal, nunca vira o gajo fazer aquilo: levantar a mão para ele. O cão indagava o que seria: iria atirar-lhe algum osso? Estava querendo lhe ensinar algum novo truque? Teria que ser algo assim, porque o gesto de levantar a mão para bater era desconhecido de Apolo. Por isso o cão levantava os olhos distraído e nem um pouco preocupado. Afinal, seu dono era o Zé e até um cão podia compreender que o Zé era o Zé.

Eu o conheci quando tinha 16 anos e fui a Portugal pela primeira vez com minha mãe, conhecer minha família de além-mar. Já no aeroporto, nunca fui tão abraçado, apertado e beijado na minha vida. Até hoje. Depois todos nos reunimos em torno da mesa para uma refeição que parecia eterna e de certa forma o era. Foi ali que vi o Zé pela primeira vez, casado com a Milai, que por sua vez era filha da Teta, prima da minha mãe. O parentesco parece um pouco distante, mas a relação de todos nós era próxima.

O Zé conheceu a Milai no curso de Cinema na década de 60, ainda sob a ditadura. Nunca mais se separaram e doravante “o Zé e a Milai”, “a Milai e o Zé” passaram a ser uma entidade única. O Zé veio a ser diretor de fotografia, a Milai foi para o campo dos desenhos animados, sua paixão. Casaram-se e tiveram duas pequenas, a Marta e a Inês. Quando os visitei pela primeira vez, as meninas tinham 4 e 2 anos e eu passava boa parte do tempo a brincar com elas.

De certa forma, eu também era uma criança. O Zé e seu sogro, o Liano, eram comunistas e muito interessados em política, pois em 1977 havia apenas 3 anos que Portugal havia retomado a liberdade democrática após a Revolução dos Cravos. Liano era um doce e quis me orientar, entregando em mãos os diários de Che Guevara. Mas eu preferi ler as obras completas de TinTin, sob o beneplácito do Zé, que disse ao Liano que tudo tinha a sua hora.

O Zé era assim, de opiniões firmes e claras, mas de uma imensa delicadeza no trato com os outros seres humanos. Muito mais significativa foi a lição que me deu ao sugerir que eu retirasse o nome da marca de um grosso casaco, ensinando:

– Lhes damos nosso dinheiro e ainda querem que passeemos por aí a lhes fazer propaganda gratuita.

Tudo isso dito com bom humor e gentileza. Nunca houve e nunca haverá anfitrião como o José Luis Carvalhosa. Muitos anos mais tarde, quando estava pesquisando na Escola Francesa de Arqueologia no final dos anos 80, vim passar o Natal e o Ano-Novo com a família portuguesa. Todos os dias o Zé aparecia em casa com um peixe, uma carne, uma sobremesa nova para agradar ao seu primo brasileiro. E tudo regado a bom vinho português. Eu não era e não sou de beber, mas não podia deixar de acompanhar meu generoso primo. Resultado: engordei cinco quilos em 20 dias. Cinco quilos de felicidade, cinco quilos de amizade e carinho.

Ninguém foi mais português do que o Zé, ao entender que a maior alegria é comer e beber em boa companhia. Ele era capaz de colocar a família inteira em um automóvel e percorrer toda a Serra da Estrela em busca de um queijo, como se fosse a jornada pelo Santo Graal. E era, pois em torno daquela mesa sempre farta, sem alarde, o amor corria mais solto do que o vinho.

O Zé tinha muitas e muitas histórias. Tinha sido obrigado a servir ao exército português na África durante as guerras de libertação. Não me contou aventuras espetaculares em que correra perigo de vida e sim suas observações sobre os angolanos. O Zé era que nem aquele monstro chamado História como definido por Marc Bloch, só se interessava pelo que era humano. Nunca o vi falar de filmes, de ter feito isso ou aquilo, o Zé era, sim, o centro da família, mas nunca foi autocentrado. Ouvia com mais prazer do que falava e olha que gostava de falar e falava bem, narrando uma história de maneira saborosa no ritmo certo.

Não que a sua carreira fosse pouco importante. Ele participou de todo um movimento de renovação do cinema português após a Revolução dos Cravos, tendo sido um dos fundadores da CinEquipa, uma cooperativa de cineastas decididos a fazer documentários sobre a realidade portuguesa. O Zé foi diretor de fotografia no cinema e na televisão, tendo recebido em março de 2018 o prêmio da Associação de Imagem Portuguesa pelo conjunto da sua obra.

Sim, depois que eu cresci um pouquinho, conversávamos sobre o estado do mundo. Zé tinha uma visão sempre crítica, ancorada no seu entendimento do funcionamento do capitalismo com todas as suas inevitáveis perversões. Mas falava sem raiva. Compreendia ser tudo uma manifestação do humano e sei que tinha esperança de que tudo mudasse, acho que acreditava mais nisso do que na possibilidade do nosso Sporting voltar a ser campeão.

Mas o Zé, com toda a sua sabedoria discreta, dedicou toda a sua vida, de corpo e alma, a fazer felizes aqueles que estavam próximos dele, ou seja, a sua família, ao mesmo tempo em que lutava para que um dia todas as famílias do mundo possam ter direito a uma vida digna. Seu coração era tão grande que nele cabia até um primo carioca e toda a família brasileira.

Saudades, Zé. Muitas saudades. Se a saudade é mesmo uma exclusividade portuguesa, eu nunca fui tão português em minha vida.