Histórias do Alvito
UMA HISTÓRIA QUE NÃO É MINHA
O bolo de fubá estava tão gostoso que até compensou o crime inafiançável de beber café de garrafa térmica. Agora vou contar como cheguei lá. Lembro que em Acari uma moça me disse: — Meu filho também é historiador, ele adora ouvir histórias.
Sexta-feira é o dia de praticar a vadiagem, de exercitar o ócio. É o dia de lembrar que meu pai era baiano e fazer tudo devagar, prestando atenção, desfrutando o sabor. A programação de hoje estava boa. Primeiro um café bem saudável de iogurte com granola sem dispensar castanhas de caju. Depois, fui pagar minha dívida com o corpo na academia. Em seguida, fui cortar o cabelo e bater papo com André, o barbeiro. Assim, sem dor nem pressa, que são quase a mesma coisa, chegou a hora do almoço.
Calma que já chega a história, isso é só introdução, contexto. Depois de um almoço a peso em que havia até risoto de camarão, fui buscar o carro no estacionamento para ir para casa. No caminho, caí na tentação de parar em um simpático café que serve coisas “do Norte”: tapioca com muitos recheios, queijo coalho, cuscuz com carne seca, bolo podre (de tapioca) e muito mais.
O dono do estabelecimento é um jovem trintão, baixinho e mais para o redondo de formas. Vou chamá-lo de Pedro. Elétrico, é uma simpatia e não resiste a conversar com os clientes, nem eles a conversar com o Pedro. Eu até já havia conversado com ele das outras vezes em que estive ali, mas desta vez percebi que ele queria, tão simplesmente, contar a história da sua vida. Pelo brilho nos olhos, tive certeza de que seria interessante.
Na verdade, ele é cearense. Ele e dois irmãos mais novos, foram levados para Manaus pelos pais, que lá continuaram a ser donos de uma mercearia. Isso lhes permitiu ter uma boa vida, a ponto de comprarem mais três lojas, terem carro, etc. Mas isso foi só depois de muitos anos de trabalho: Pedro trabalhou de trocador de kombi clandestina aos oito anos de idade, carregador, lavador de automóveis e por aí vai. Ele diz não se queixar da sua infância, pois ela lhe deu casca para o que viria depois. E foi mesmo preciso.
Na adolescência, Pedro era o orgulho dos pais: logo seria o primeiro da família a completar o segundo grau. Faltando uma semana para isso acontecer, os pais morrem em um acidente de carro e Pedro, com dezessete anos, agora tem que se virar para ser pai dos dois irmãos de oito e cinco anos de idade.
O problema financeiro fica relativamente resolvido quando ele aluga as lojas e se dedica a tomar conta dos irmãos. Mas o luto foi doloroso. Ele passava as madrugadas andando pela cidade para não dormir, pois tinha sempre o mesmo pesadelo: os pais apareciam e diziam que estavam viajando, perguntando a ele se estava tomando conta dos irmãos. Pedro conta que conheceu todos os usuários de droga da cidade, que segundo ele foram seus “analistas”, pois passava a noite conversando com eles sem jamais usar nada.
A coisa piorou. Por um lado, os tios que queriam ter a guarda dos irmãos dele tiravam fotos de Pedro na madrugada para tentar caracterizá-lo como usuário. Lembremos que a família tinha algumas posses. Do outro, uma moça que sabia estar grávida de outro se ofereceu a Pedro até que eles tiveram uma relação sexual. Quando a bebê nasceu, a moça insistia que Pedro era o pai, entrava na casa dele pedindo dinheiro e quando a meninha já falava fazia ela gritar — Pai! Somente o teste de paternidade é que solucionou de vez o problema.
Já casado, Pedro propõe à mulher uma mudança para Blumenau. Mas ela alega que jamais vai abandonar sua família. Nessa altura, Pedro já tinha se tornado “cristão” e frequentava uma igreja neopentecostal. Segundo ele, o pastor nunca lhe pediu oferta e mesmo quando ele foi falar sobre o dízimo o pastor lhe disse que isso cabia a ele, Pedro, resolver. Afirma que frequentou o templo vários meses sem fazer nenhuma contribuição financeira.
Pedro não força a barra com a mulher, mas continua frequentando a igreja, rezando e conversando com Deus. Um dia, aparentemente sem motivo, ela diz que aceita sair de Manaus para Blumenau. Os dois põem a casa à venda mas não há sequer uma consulta durante seis meses. Isso faz com que ele desista da ideia.
Até que um dia ele é assaltado e levam seu carro, um bom automóvel mas que não tinha seguro. Ele conversa com Deus e diz que não merecia colher aquilo, que só plantou coisas boas. Pede que daquilo venha algo bom. A partir daí, tem certeza de que seu carro será encontrado. Era uma sexta-feira. Na madrugada de segunda-feira a polícia liga para ele: haviam prendido o ladrão e recuperado o carro. Que agora tinha alguns furos de bala no capô.
A violência sofrida reforça o desejo de mudar de cidade Eles vendem o carro por metade do preço. É com esse valor que começam o negócio do café. E quando ele menos espera uma mulher compra a casa deles em Manaus pagando à vista, por pix, o que resolve totalmente a questão financeira.
De quantas vidas é feito um pequeno pedaço de bolo de aipim…
6 DE MAIO começa: LENDO Cem anos de solidão