Histórias do Alvito (de 2a. a 6a., quase sempre depois das 7:07)
HISTÓRIAS DO SERTÃO – URUCUIA, MEU RIO DE AMOR – PARTE 1
“Graças a Deus, tudo é mistério”
João Guimarães Rosa em carta ao amigo José Condé
Aos muitos mistérios em torno de Guimarães Rosa e de sua obra maior, o Grande sertão: veredas, é preciso acrescentar mais um. É claro que é um rio, metáfora central do livro. E não surpreende que tenha sete letras, número que desde a Idade Média encarnava a perfeição por conter os quatro elementos mais o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A palavra é Urucuia, o rio Urucuia.
Quando eu, Yan e Gustavo partimos do Rio no Burrinho Pedrês, meu objetivo principal era alcançar o Urucuia e me banhar em suas águas, que como ensina Riobaldo “são claras certas” e “vem cair no São Francisco, rio capital”. Passagens exaltando o Urucuia atravessam todo o livro, de ponta a ponta, sempre atribuías ao narrador e protagonista Riobaldo: “meu, em belo, é o Urucuia – paz das águas… É vida!” Em uma imagem ainda mais forte: “Meu rio de amor é o Urucuia.” E ainda este elogio especial: “Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol.”
Mas o que realmente me deixou intrigado e estimulado a ver este rio de perto foi a informação que colhi no livro Relembramentos, escrito por Vilma Guimarães Rosa, filha do mestre, a quem ela e a irmã chamavam de Papai João-Beleza. Ela diz, sem explicar, que seu pai havia sido batizado, em Cordisburgo, onde nascera, mas com as águas trazidas do Rio Urucuia. Por que? Como? Cordisburgo fica a mais de 500 km de distância do Urucuia. E Rosa nasceu em 1908, quando as dificuldades de transporte eram enormes.
Seja lá como for, essa ligação especial de Rosa com as águas claras do Urucuia reflete-se em Riobaldo, herói que já tem rio no nome. Muitas vezes ele afirma uma afinidade essencial entre ele e o rio, como se ele fosse o rio e como se o Urucuia fosse ele. Por exemplo quando ele diz: “Confusa é essa vida da gente; como esse rio meu Urucuia vai se levar no mar.” Ou de forma ainda mais explícita, relembrando que ele Riobaldo toda vida foi um “fugidor”, ele diz:
“… rio Urucuia é o meu rio – sempre querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele vira e recai claro no São Francisco…”
Ele chega a dizer que depois de sua morte, será continuado pelo rio, incessante:
“Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre. O que eu fui, o que eu fui.”
Ou seja, há um vínculo mágico entre o Rio-Baldo e o Rio Urucuia. Não espanta, portanto, que o Urucuia seja descrito quase como uma pessoa, com seus diferentes momentos e emoções, nesta passagem sendo comparado com a noiva de Riobaldo:
“Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de brabeza. Ele está sempre longe. Sozinho.”
Era neste rio misterioso e potente que nós estávamos chegando depois de mil quilômetros atravessando o estado de Minas Gerais na direção do alto sertão, das terras lembradas, imaginadas e recriadas pelo mestre Guimarães Rosa.
Como foi nossa chegada a Urucuia? Como foi nosso encontro com o rio de amor de Riobaldo? Isso eu contarei amanhã se os deuses forem bons.