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Minha amada mestra – Tudo por causa dela

MINHA AMADA MESTRA – TUDO POR CAUSA DELA

 

Hoje eu acordei com vontade de falar da minha amada mestra.

 

Já contei em outro lugar, mas deixa eu contar de novo o porquê de chamar a ilustre Professora Maria Lúcia Montes de “minha amada mestra”. Eu fazia o doutorado na USP e as aulas dela sobre Teoria Antropológica Moderna viraram meu pensamento e minha vida de cabeça para baixo. No bom sentido.

 

Para começar, sua técnica didática aproximava-se de um “transe teórico”. Ao invés de falar das ideias de Bourdieu, Geertz ou Levi-Strauss, ela primeiramente os incorporava na sua fala, fazia um discurso “de dentro” da teoria de cada um, para mostrar a coerência, a lógica própria àquele autor. Só depois é que vinham as análises, as críticas, os embates com outros autores. A primeira fase era essencial, nos proporcionava um mergulho em um pensamento diferente do nosso.

 

Maria Lúcia havia sido professora de Filosofia Antiga dez anos, depois lecionara Ciência Política mais uma década e por fim terminara sua trajetória na USP como professora de antropologia por mais dez anos. Por isso e pela vastidão das suas leituras e experiências práticas sobretudo no campo da cultura popular, ela parecia saber tudo. Mas se apresentava com uma humildade socrática e verdadeira diante de uma turma enorme, em que havia pessoas com formações muito diferentes. Lembro de um doutorando que lhe fez uma pergunta cabeluda com muitas citações de teoria psicanalítica e bastante arrogância. Ela respondeu com doçura, comentando cada autor com tanta intimidade quanto se estivesse conversando na hora do cafezinho.

 

Os debates teóricos eram entremeados com exemplos práticos, de situações etnográficas vivenciadas por ela no interior de Minas, na periferia de São Paulo ou, pasmem, no Rio de Janeiro. Fiquei absolutamente estupefato quando ela começou a descrever uma ida a um baile funk em Vigário Geral, o comportamento dos jovens, a presença do tráfico, o clima geral da festa. Tudo com muito detalhe e um olhar etnográfico apurado e incisivo. Era uma aula sobre a minha cidade, que eu não conhecia e ela sim. O resto é história, ou melhor, antropologia. Abandonei a tese de História Antiga para estudar a Penitenciária, fui proibido de realizar este trabalho e fui pesquisar a favela de Acari. Mas hoje é dia de falar dela.

 

Ainda sem haver decidido mudar o tema da pesquisa, na confraternização do último dia de aula, aproximei-me com respeito e lhe disse:

 

– Professora, a partir do dia de hoje só irei chamá-la de “minha amada mestra”

 

Ela riu com delicadeza e deve ter pensado que eu havia bebido umas e outras, o que não era o caso. Ela acabou se tornando a minha orientadora no doutorado sobre a favela de Acari e nunca mais deixei de chamá-la de “amada mestra”. Há mais de 20 anos.

 

Por causa dela eu deixei de ser um sisudo historiador da Grécia antiga e tive que me reinventar como pessoa em um processo que nunca termina até tudo terminar.

 

Por causa dela eu fui conhecer de perto da vida dos brasileiros deserdados pela sorte, mas não pela alegria, pela criatividade e pela vontade de viver.

 

Por causa dela eu pude vislumbrar o mundo da religião e suas muitas facetas, compreendendo melhor a busca do sagrado e o que isso traz para as pessoas que nele mergulham.

 

Por causa dela eu caí no samba: candongueiro, velha guarda da portela, puxando conversa e até aprendi a sambar miudinho.

 

Por causa dela eu vi a academia com outros olhos e me libertei.

 

Por causa dela eu visitei o Recôncavo mágico, onde conheci Mestre Ivan, Mestre Gato e outros sábios.

 

Por causa dela fui estudar o que eu gostava, como o futebol e passei um ano de sonho na Inglaterra que até virou livro.

 

Por causa dela eu entrevistei trabalhadores, traficantes, policiais, jogadores de futebol, sambistas, quilombolas, jongueiros, funkeiros, torcedores, mães-de-santo, pastores, mestres do samba de roda e da capoeira, todos com histórias para contar, todos meus professores.

 

Mas ninguém me ensinou mais do que minha amada mestra, Maria Lucia Montes.

 

Não foi por causa de sua impressionante e delicada erudição.

 

Não foi por causa de suas aulas magnas sobre o uso de conceitos.

 

Não foi por causa da sua generosidade ao apresentar os autores, literalmente “baixando o santo do seu pensamento”, tentando entender por dentro o valor de cada pensamento.

 

Não foi por sua elegância e paciência infinitas em sala de aula.

 

Foi por sua humildade em estar sempre disposta a aprender, por sua certeza de que há sempre muito mais a aprender. Por sua certeza de que há muitos mundo lá fora a serem descobertos.

 

Amada mestra Maria Lúcia Montes, serei sempre grato por ter me ensinado a largar as amarras e me lançar nesta aventura rumo ao desconhecido munido apenas da coragem que você me ensinou a ter.