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Na terra do Rei dos Livros

NA TERRA DO REI DOS LIVROS

Para desespero de toda a família, mas sobretudo de mamãe, a partir dos 14 anos, meu primo adolescente chamado Marcos Alvito passou a não aceitar mais qualquer presente de aniversário ou Natal. O garoto só queria grana, bufunfa, dindin. Mas não era para abrir uma caderneta de poupança, era para comprar livros e mais livros. Por uma sorte, seu aniversário era no mesmo mês em que havia uma ótima feira de livros na Praça Nossa Senhora da Paz com descontos de 20%, uma atração irresistível. Ou então, melhor ainda, percorria os muitos sebos do centro em busca de tesouros conhecidos ou de descobertas.

Foi a alma desse menino apaixonado por livros, habitando um corpo quarentão, que desembarcou maravilhado em Hay-on-Wye, cidadezinha com menos de dois mil habitantes localizada em Gales logo após a divisa com a Inglaterra e às margens do belo rio Wye. Wye já foi um ponto de parada numa rota comercial, como tantas localidades à época em que havia que descansar os cavalos e os homens precisavam comer e descansar. Estava destinada a ver sua população envelhecer, com os jovens saindo em busca de emprego e aventura. Estava destinada a morrer.

Foi aí que entrou em campo Richard Booth,um filho da terra, educado em Oxford. Depois de se formar, volta para casa e com uma ideia em mente, compra a antiga estação do Corpo de Bombeiros e a transforma, em 1962, numa grande loja de livros usados, um sebão, poderíamos dizer. Estimula a transformação de Hay-on-Wye em uma cidade de livros, sobretudo de livros usados. Na década de 70, quando já havia triunfado sua ideia, Richard Booth compra o Castelo de Hay e se auto-proclama “O Rei dos Livros”, rebatizado como Richard Couer de Livre (Ricardo Coração de Livro) e torna Hay um “Reino Independente”. Depois iria criar um Parlamento simbólico (House of Lords) e até conceder títulos de nobreza mediante remuneração.

Pronto. Hay-on-Wye começou a atrair dezenas, centenas de milhares de turistas interessados em livros mas também no ambiente tranquilo e simpático das terras do Rei dos Livros. E também escritores, artistas e músicos, alguns deles dispostos a morar naquele reino da cultura. Para coroar, verbo que aqui não é usado à toa, no final da década de 80, é criado o Festival Literário de Hay-on-Wye, que atrai milhares de visitantes todos os anos e foi o inspirador da nossa FLIP.

Quando o menino e eu desembarcamos em Hay-on-Wye em 2007, lá havia mais de 30 sebos. Há tantos livros que muitas vezes estão do lado de fora, nas calçadas, nos jardins, nas muralhas do castelo, por toda a parte. Eu senti estar abraçando e sendo abraçado por livros, uma sensação indescritível, quente e maravilhosa. Há livrarias mais gerais, com toneladas e toneladas de livros. Para quem gosta de garimpar é o Paraíso. E outras especializadas: livros infantis, policiais, sobre carros, sobre línguas, sobre a literatura do século XIX, História Natural e por aí vai.

É uma cidadezinha muito charmosa, caminhar por ali parece uma viagem no tempo. Eu me senti no meu meio natural, respirando um ar feito de papel, palavras, ideias e sonhos. Mesmo sendo um anarco-pandeirista, considero-me um leal súdito de Sua Majestade, Richard Couer de Livres, o Rei de Hay-on-Wye.

Longa vida a ele e a seu reino independente.