/Nada desse negócio de eu te amo

Nada desse negócio de eu te amo

NADA DESSE NEGÓCIO DE EU TE AMO

Com papai não havia esse negócio de “eu te amo. Ao contrário de mamãe que lusitanamente bradava o amor por seus filhos para quem quisesse ouvir e para quem não quisesse ouvir também, papai preferia gestos, ações. Entre eu e ele, o amor era afirmado através da nossa paixão comum pelo Flamengo e pela mania de assistirmos juntos jogos de futebol e de basquete, sobretudo. Ao invés de “Filho, eu te amo” era: “Filho, notou essa jogada? Se passa na tevê daqui a pouco estarão fazendo isso aqui no Brasil”. Não era “Pai, te amo muito” e sim: “Esse armador do Nets tá acabando com o jogo”. E ali ficávamos horas, fingindo que estávamos vendo um jogo de basquete.

Papai ficou órfão aos dez anos de idade. O pai era um engenheiro importante, a família vivia bem. De repente, ele e meu tio são mandados para um colégio interno em Petrópolis e passam a só ver a mãe de quinze em quinze dias. Vovó nunca foi muito expansiva, era mais contida. Reprimido no colégio interno, pouco acolhido em casa, papai virou para dentro. Ele dizia com os olhos, mas não conseguia falar. No colégio interno, a única diversão e válvula de escape era o basquete, que ele passou a adorar o resto da vida.

Quando estávamos inspirados, íamos bater uma bolinha juntos. Futebol não dava, papai só jogava basquete. Mas de basquete ele entendia. Havia jogado no time juvenil do Flamengo. Seu princípio máximo era o despistamento e tentou me ensinar a técnica que ele dominava como ninguém: passar sem olhar, olhando para o outro lado. Sendo assim, íamos para as quadras da Lagoa e brincávamos um pouco juntos. Papai era bom professor e eu ficava feliz ao ver a alegria dele com uma bola laranja nas mãos.

Nesse dia de sol, fomos para a Lagoa com nossa bola. Papai devia ter uns 70 anos, mais ou menos. Ficamos treinando arremessos e bandejas despreocupadamente. De repente uma turma que estava formando uma pelada nos convida para participar. Nada demais, não fosse a idade de papai. No jogo, ele era menos um na marcação, pois não tinha mais velocidade. Mas com a bola na mão não errava um passe. Não tentou fazer nada de espetacular, só distribuir bem o jogo.

Inesperadamente, quando o outro time estava atacando sua cesta, papai se posiciona no meio da quadra. O time dele ganha o rebote e lança a bola para o jogador mais avançado, que vinha a ser ele. Papai não titubeia e parte na direção da cesta, com o máximo de velocidade que a máquina dele permitia, que não era muita. O ineditismo da jogada meio que paralisou todo mundo: “Caraca, o coroa vai pra bandeja!”. Todos menos um jogador do time adversário, um jovem que partiu a alta velocidade atrás do velho jogador. Agora havia um suspense no ar: será que o velho faz a cesta ou vai tomar um toco?

Alguém gritou “Olha o ladrão” mas papai, malandramente, não olhou para trás, nem demonstrou qualquer abalo. Somente continuou “correndo” na direção do Eldorado. O garoto, vigoroso, desembestado, quase com raiva, achando um absurdo tomar cesta dum velhote. Papai chegou no garrafão, o garoto já agarrava sua sombra… Papai dá o breque, parecendo que iria subir para a bandeja… joga as mãos para o alto mas não larga a bola… O garoto salta no vazio, deve estar caindo até hoje… Papai, tranquilamente, depois daquela “boca” bem dada, dá um pulinho e usando a tabela põe a bola lá dentro com a graça de um menino.

Não me lembro se a turma aplaudiu. Mas bem que merecia.

Pai, escrevi esse negócio todo só pra dizer que eu te amo.