Era uma vez dois gigantescos monstros chamados Sérgio e Ricardo. Ou melhor, era uma vez dois gêmeos brutamontes que quando não estavam brigando entre eles batiam em todos os meninos no prédio, inclusive eu. Para disfarçar o prazer que sentiam, provocavam alguma querela, irritavam algum de nós até que nós explodíamos e depois éramos surrados. Era uma questão de método.
No meu caso, funcionava da seguinte maneira: depois da morte de nossa irmã mais velha, fui oficialmente encarregado por minha mãe de cuidar de minha irmã menor, três anos mais nova. Até então eu era o despreocupado filho do meio, sem as pesadas responsabilidades dos primogênitos nem a paparicação dos caçulas. De repente, aquela missão, que encarei com toda a seriedade. Creio que foi a partir daí que passei a ter esta personalidade híbrida, um sujeito muito sério em algumas coisas, disciplinado até e por outro lado bastante rebelde e anárquico.
Seja lá como for, Sérgio e Ricardo não demoraram a encontrar o meu ponto fraco. Todos os dias eles arrumavam um jeito de ameaçar, provocar ou chatear minha irmãzinha. E lá ia eu, tomar satisfações e tomar uns catiripapos. Para eles devia ser muito engraçado. Fico pensando se havia um revezamento:
– Não, Sérgio, hoje é o meu dia, esta semana sou eu às 3as. e 5as…
A vida não era esse drama todo, é claro. Hoje em dia é que fico mais indignado. Havia muitas brincadeiras entre as crianças naquele mundo sem celular, computador, videogame, IPod, IPad e tudo mais. O maior brinquedo de cada criança eram as outras crianças. Em casa, eu adorava ler as histórias em quadrinhos que o jornal publicava. Na minha memória havia uma página inteira de quadrinhos todos os dias. Eu esperava pacientemente meu pai esquadrinhar o jornal de cabo a rabo até ter a autorização para ler.
Uma das minhas tiras preferidas era a do Fantasma, que era super-herói ma non troppo: era um ser humano normal, sem nenhum super-poder. Na verdade, havia uma dinastia de Fantasmas e o Fantasma atual era o 21o. da linhagem. Tudo teria começado séculos antes quando piratas mataram o pai do marinheiro britânico Christopher Walker, que jura combater o crime e que aquela missão passaria de pai para filho. Também era conhecido como “O espírito que anda”, algo muito impactante para uma criança de 7 anos. O Fantasma usava uma malha apertada, uma espécie de venda aberta nos olhos e, o que é mais importante do que tudo, um anel no dedo médio com o símbolo da caveira. Logo havia na praça anéis de Fantasma para vender, muito populares entre os garotos.
Um dia eu estava na frente do meu prédio olhando o movimento incessante da feira, já que era um sábado. Foi aí que ocorreu o inesperado. Sérgio e Ricardo também estavam por ali. À época era comum que garotos se oferecessem para carregar as compras das senhoras, para receber alguns trocados. Eis que ia passando um menino daqueles, histórico-sociologicamente negro, um pouco franzino até e pelo menos um palmo mais baixo do que meus odiados monstros.
Um deles, não sei até hoje se foi o Sérgio ou o Ricardo, mexeu com o garoto. Algo como “Tá pesadinho isso aí?” ou “Tem certeza que aguenta?”, se é que não foi coisa pior. O menino não disse nada. Quando menos se esperava as compras já haviam sido pousadas no chão e ele já desfechara três ou quatro socos bem na cara de um dos gêmeos. O outro veio em auxílio do irmão. Agora eram dois contra um. Mas a fúria e a velocidade do garoto eram uma coisa que eu nunca havia visto. Parece que ele havia esperado toda a sua vida até poder castigar aqueles dois.
Eu assisti boquiaberto, prendendo a respiração e obviamente torcendo pelo garoto. Quando ele foi embora, quando Sérgio e Ricardo bateram em retirada, vi que brilhava um anel na sua mão direita. Foi então que divisei no rosto dos gêmeos a marca da Caveira, que agora, ao menos por alguns momentos, iria tatuar a pele daqueles dois.
Se o Fantasma era mesmo “O espírito que anda” eu não sei. Só sei que naquele dia ele encarnou em um menino que trabalhava na feira lá em Botafogo.