Dizem que o Brasil é complexo e não é para principiantes. Eu não acho. Dá para decifrar o Brasil da minha janela. Sou professor, fui professor universitário por 32 anos e moro num quarto-e-sala. É muito confortável, uma verdadeira nave espacial com tudo que eu preciso, sobretudo meus bens imateriais. Mas a minha situação material, além da minha falta de habilidade com o dinheiro, também indica a condição habitual do profissional da educação.
Daqui eu avisto do outro lado da rua uma casa de dois andares bem confortável, que sempre tem uns três ou quatro carros de luxo estacionados no quintal. O pater famílias é um senhor brasileiramente branco, baixo, gordinho, com bigode de chefe de tráfico mexicano. Ele e a esposa iniciaram uma obra portentosa. No mesmo dia em que praticamente o país todo começou a quarentena. Uma obra aparentemente supérflua, ao menos nesse momento, pois consiste num puxadinho, numa ampliação da área da casa. E tem sido uma quebradeira, furadeira e barulheira geral desde então. Eles nem pensaram nos vizinhos, imagina…
Muito menos nos quatro operários histórico-sociologicamente negros encarregados do trabalho e que sem dúvida enfrentam trens e ônibus nada vazios, arriscando a vida por uns caraminguás nestes tempos de covid-19.
Alheio a tudo isso, há um catador que passa todos os dias pela rua que me separa da casa grande, dirigindo um imenso carrinho de rolimã onde amontoa o que conseguiu catar durante o dia inteiro: papel, metais, plásticos. Não preciso dizer que não usa luvas. Para ele cada dia é um catar ou morrer e o covid-19 é a menor das ameaças.
Aí o resumo do Brasil: uma classe média lamurienta e impotente (eu), uma classe alta inconsequente e irresponsável, uma classe operária sofredora e valente e uma multidão de miseráveis a tudo resistente.
Podem refinar à vontade, mas creio que boa parte do Brasil na minha janela cabe.