O CRAQUE IMPROVÁVEL
Hoje em dia, devido aos progressos da ciência e sobretudo graças aos avanços da cultura, é possível nascer com um corpo de mulher e tornar-se homem ou vice-versa, nascer com um corpo masculino e tornar-se mulher. Mas não há quem faça perna-de-pau virar craque. A condição de perna-de-pau é eterna, pessoal e instransferível. Quem nasce perna-de-pau, assim morre e permanece na memória dos vivos. É quase uma maldição. Disso, modéstia à parte, eu entendo, sou perna-de-pau registrado em cartório e documentado pela imprensa, quem quiser que procure a minha foto na gloriosa derrota do Pindorama por 9×1 para a Seleção alemã de escritores.
Pois hoje venho contar a história do perna-de-pau mais espetacular que conheci. Reza a lenda que já nasceu chutando furiosamente o berço. Queria acertar a cerca de madeira mas acabava dando pontapé na enfermeira. Durante a infância, tropeçava na bola, caía e levantava para mais adiante tombar e novamente se erguer. Embora já demonstrasse todos os indícios de ser um clássico perna-de-pau, aparecia também uma outra característica: uma vontade férrea, um amor incondicional por aquela que o desprezava tão cruelmente: a bola.
Eu o conheci quando era estudante de História e formamos um time do nosso Núcleo de pesquisas sobre futebol. Ali ele era uma estrela em ascensão, um Neymar acadêmico com bom caráter, companheiro leal, amigo querido de todos. Quando formamos o time de camisas azul celestes, ele era titular absoluto. Seria um crime deixá-lo de fora. E tem mais, ao contrário do perna-de-pau tradicional que vai jogar de beque rebatendo para todos os lados, ele pediu para ser centro-avante. É verdade que não sabia correr direito, não era veloz, não tinha chute forte nem colocado, não cabeceava bem e é claro que não sabia fazer lançamentos nem muito menos driblar. Mas sabia brigar com a bola, com os beques, com o goleiro, com quem mais aparecesse à sua frente. Não estou falando de violência e sim de insistência.
Eu o vi fazer um gol inacreditável, que felizmente foi filmado para o desespero dos incréus. Uma bola foi despretensiosamente lançada para frente, onde encontrou nosso herói em meio a dois zagueiros e o arqueiro. Ficamos todos paralisados assistindo ao que parecia um filme enquanto ele dividia a bola uma, duas, três, sete vezes até que a teimosa pelota aceitou beijar as redes. Chamo esse gol, que nunca deixarei de exaltar em prosa e verso, de “O triunfo da vontade”.
O tempo passa, meu amigo se formou, defendeu o mestrado e viajou para a Europa para pesquisar acerca do seu tema de doutorado. Atualmente em Berlim, arranjou uma pelada com o pessoal. Só que ele não é nenhum atleta e como os alemães não o conheciam, ficou difícil convencê-los de que era um artilheiro reconhecido no Brasil. Resultado: foi parar no gol, destino final do perna-de-pau.
Agora é que a parte bacana da história começa. Ele sempre foi inimigo figadal dos goleiros. Muitas vezes, depois de um esforço hercúleo, via sua tentativa morrer nas mãos ou nas luvas deste estraga-prazeres profissional que é o arqueiro. Só que agora, sendo obrigado a isso, ele se descobriu um goleiro excelente, daqueles que salvam 5, 6 bolas quase impossíveis por jogo. Fato notável: os alemães, quase sempre tão sérios, vieram cumprimentá-lo. Meu amigo descobriu que é craque na posição que ele sempre odiou.
Agora se lamenta por não ter ido para o gol mais cedo. Quem sabe teria vestido o manto sagrado com o número 1 atrás. A vida é assim, não dá pra saber. O que ele sabe é que para ele mudar de posição foi – se me permitem a brincadeira – mais gostoso do que mudar de sexo.
Meu querido amigo Luiz Burlamaqui Soares Porto Rocha é o craque improvável.