O ESPIÃO HOLANDÊS SE DÁ BEM
Tudo começou mal. Bem que Mestre Adó, um dos ases da capoeira santoamarense havia me alertado:
– São Braz não é brinquedo, seu moço, aquilo lá só tem uma entrada e uma saída…
São Braz é um distrito de Santo Amaro, a mais ou menos 5 quilômetros do centro. Basicamente, São Braz é um humilde povoado, onde a população vive do mar. Os pescadores saem bem cedo buscar o peixe nosso de cada dia. Quando voltam, à tarde, é uma festa com música alta e cerveja. É bonito ver os barcos chegando carregados de peixe. Durante o dia, mulheres e crianças trabalham na maré catando mariscos. É uma vida bastante dura.
A primeira vez em que estive lá, logo caminhei em direção ao “porto”. Mas quando passei por uma senhora e duas moças habilmente limpando marisco com pequenas facas bem afiadas, estranhamente elas disseram que eu não fosse lá, pois na descida havia um cachorro bem brabo. Achei aquilo bastante estranho e disse a elas que iria arriscar minha sorte. O perigoso cão era um doce e inofensivo vira-lata. Aquilo despertou minha curiosidade e na volta eu fiz questão de parar para conversar com elas.
Depois do mal estar inicial, a conversa fluiu bem. Acabei descobrindo que uma delas pensou que aquele branquelo alto e narigudo pudesse ser um espião holandês. Explicando: em São Braz havia a notícia de que um grande grupo empresarial holandês estava interessado em fazer um complexo hoteleiro na região, o que afetaria, e muito, a sobrevivência da população local. Depois que descobriram que eu era apenas um carioca buscando suas raízes baianas, todos nós demos boas risadas.
Naquele dia retornei a Santo Amaro, mas depois voltei a São Braz e lá passei três dias, hospedado na casa de Dona Nildes, a senhora que havia me confundido com um espião holandês juntamente com sua filha e uma amiga desta. Não saí para pescar, mas fui catar mariscos um dia com elas, o que está longe de ser um trabalho fácil. Na verdade, embora eu tenha ido com esta intenção, elas não me deixaram catar um marisco sequer. Vi Dona Nildes fabricando espetos de pau para churrasco, outro trabalho que exige faca afiada e tem baixa remuneração. Em 2011 ela tinha que fazer mil espetos para receber sete reais.
O carioca foi tratado com toda fidalguia. Cada refeição era preparada com esmero, permitindo que eu desfrutasse de pratos com peixes e mariscos literalmente tirados do mar. Mas o principal foi o carinho com que o ex-espião foi recebido. Eu não sabia como retribuir. O jeito foi escrever uma carta de agradecimento:
São Braz, Bahia, 16 de janeiro de 2011
Prezada Sra. Nildes,
Talvez sua casa não seja um palácio, mas ali fui tratado como um rei. Mesmo sem nenhum merecimento os deuses têm sido bons comigo e tenho tido grandes alegrias (e algumas tristezas pra temperar) em minha vida. A de ser acolhido em sua casa não foi a menor delas. Vim atrás de samba de roda e de Mestre Adó. Não achei nenhum dos dois, mas achei muito mais: amizade, carinho e principesca hospitalidade. É demais para um carioca fraco e sem valor, embora filho de baiano. Admiro a sua coragem e de sua linda família. É errado dizer que vocês vivem da maré, vocês vivem de trabalho, coragem e esperança. E de luta por um mundo sem tanta maldade e injustiça.
Ao chegar em Santo Amaro eu chorei muito e agora escrevo ainda com lágrimas a escorrer. Chorei 500 anos de violência. Chorei 500 anos de preconceito. Chorei 500 anos de abandono. Chorei 500 anos de falta de respeito e consideração. Um poeta duma terra distante no tempo e no espaço disse certa vez que nada do que fosse humano lhe era estranho. A mão que arranca o sururu do mangue tem cinco dedos como esta que lhe escreve. Foi uma honra pisar na lama pisada pelos pés de vocês. E honra maior compartilhar com vocês aquele delicioso pirão de sururu que já povoa minha memória.
Dormi sob o mesmo teto de sua família, como se fosse um irmão. Eu acho que sou, não por merecimento ou ousadia, mas porque somos todos feitos do mesmo barro, só varia a cor e o formato do pote. Permita pedir aos deuses por vocês, por esses sorrisos morenais que vocês entregam ao céu (copio Paulinho da Viola). Que eles lhes dêem sempre muita saúde e zelem por vocês com o mesmo carinho que eu de vocês recebi. Com a diferença de que vocês são merecedores.
O provérbio mexicano já diz: cadáver e convidado começa a feder no 3º. Dia. Para não aborrecê-la mais me despeço, com o coração cheio de sentimentos contraditórios: a alegria pelo que vivi e a tristeza de saber que (Paulinho da Viola me socorre novamente)
“a beleza do lugar,
pra se entender,
tem que se achar,
que a vida não é só isso que se vê,
é um pouco mais,
que os olhos não conseguem perceber”
Se o mundo tivesse olhos pra ver vocês do jeito que são…
Um abraço de irmão branquelo e meio, totalmente emocionado, um espião holandês regenerado (brincadeira),
Marcos Alvito (mas pode me chamar de Carioca que eu gosto)