/Ou ninguém ou todo mundo

Ou ninguém ou todo mundo

OU NINGUÉM OU TODO MUNDO

A história aconteceu ainda no selvagem século XX, desprovido do políticamente correto. Aluno com dificuldade de aprender era burro e outras variações do humano atendiam pelos nomes de surdo, cego, mudo e, a mais dura delas, retardado mental, ou apenas retardado, para os íntimos.

Corta para o prédio de classe média de Botafogo onde meu priminho passou sua infância. Ali havia um menino gordinho, ruim na corrida, péssimo no futebol e meio bobão. Todo mundo sabia disso e é lógico que era alvo de muitas brincadeiras, ninguém tinha pena dele não. Mas os meninos mais velhos, inclusive meu primo, também não deixavam ninguém bater nele ou fazer maldades. Da mesma forma que não deixavam isso acontecer com outros meninos menores. Era uma turma bacana.

Muitos anos depois, meu primo reencontrou o tal menino, agora um homem, mas ainda vivendo na casa e na barra da saia da mãe. E ali teve um estalo. O tal menino tinha dificuldades sim. Mas a mãe, muito antes dessa maravilhosa onda de reintegrar ao humano tudo que é humano, tinha tido uma ideia corajosa. Sem dizer nada a nós, nem a nossos pais, deixava seu filho ali no meio de outras crianças como uma criança “normal”. Porque ele era uma criança do mesmo jeito que os outros. Afinal todos tinham as suas dificuldades. Tinha um que soltava peidos no elevador e antes que alguém o acusasse ficava vermelho e negava tudo: “não fui eu, não fui eu”. Tinha outro que adorava brincar com insetos, incluindo aquilo que o Titãs muito tempo depois iria batizar de “bichos escrotos”. Tinha um com uma cabeçorra magnífica. E todo mundo achava que ia ser jogador de futebol, meu priminho era um.

Ou seja, já naquela época, ou todo mundo era normal ou ninguém era.