UMA HISTÓRIA POLITICAMENTE INCORRETA …
Posso contar uma história politicamente incorreta? Não posso? Tudo bem, sendo assim eu não conto… Mudaram de ideia? Então eu conto.
Enquanto eu fazia um doutorado sobre as mulheres de Atenas e Esparta que depois abandonaria, trabalhava como voluntário em uma ONG. Havia sido chamado por Marcelo, amigo muito querido, um ex-aluno que atuava na área de educação do sistema prisional do Rio de Janeiro desde o tempo da graduação. A ONG era dirigida por um casal de homens e seu primeiro propósito – lembrem que estávamos na primeira metade dos anos 90 – era difundir informação e ajudar na prevenção do HIV junto às populações consideradas de risco: homossexuais, garotos de programa e prostitutas. Marcelo convencera os dois que os presos também eram uma população de risco, comprovando com as altíssimas taxas de soropositivos encontradas nas cadeias cariocas.
Sendo assim, o trabalho de Marcelo, para o qual ele me chamou, consistia em conversar com os presos tentando convencê-los a utilizar a camisinha que distribuíamos. O trânsito de Marcelo junto a eles era excelente e muitos vinham conversar e receber o preservativo. Mas as coisas não são tão simples assim, sobretudo na cadeia. Só podíamos distribuir um preservativo para cada um. Foi aí que um deles me explicou que assim não funcionaria. Pelo seguinte: na cabeça dos presos, a visita íntima da mulher, a cada quinze dias, deveria funcionar como uma espécie de vacina contra a infidelidade, fantasma que assolava a mente daqueles homens impedidos de atravessar os muros da prisão. Sendo assim, eles procuravam maximizar sua performance, se é que me entendem. E aí uma camisinha só não era suficiente. E aquilo não era somente romantismo. Sem mulher eles perdiam o contato com o mundo exterior e toda e qualquer possibilidade de auxílio.
Nesse meio-tempo, a ONG é procurada por uma associação de surdos, preocupada com o aumento da incidência de HIV entre seus associados. A surdez dificultava a obtenção de informações e fazia com que o grupo tivesse taxas mais altas do que a população em geral. Sempre diligentes, os dois fundadores da ONG logo providenciam um filme sobre a prevenção à AIDS todo “falado” na linguagem dos sinais. Acontece que o filme era americano. E era um filme feito para a comunidade gay. Na pequenina sala da ONG, localizada na Glória, estavam uns 30 surdos, em sua maioria homens. Logo perceberam que o filme tinha esse viés, cheio de rapazes musculosos fazendo gestos envolvendo o sinal de OK e o indicador entrando e saindo repetidamente. Primeiramente surpresos, logo eles começaram a ficar indignados. Marcelo e eu nos entreolhamos, já com vontade de rir. E não nos seguramos quando um dos homens surdos virou para nós e disse, falando com certa dificuldade:
– Porra, nós somos surdos mas não somos viados…
Desculpem, leitores e leitoras de 2017, se eu quisesse dourar a pílula, poderia dizer que ocorreu um “choque de políticas identitárias”. Mas eu sei que é uma história politicamente incorreta.
Com a atenuante de que é verdadeira.