/A menina da Cidade Alta – parte 2

A menina da Cidade Alta – parte 2

Quando subia de volta para a Cidade Alta, a menina Fernanda ainda tinha muito o que fazer. Desde bem pequena que ajudava na casa. O pai era operário da indústria naval e a mãe uma costureira habilidosa que trabalhava muito e precisava da ajuda da filha nas tarefas da casa. A menina, além de cozinhar de vez em quando, varria a casa e  lavava roupa na tina naquela época em que ainda não se sonhava com máquina de lavar.

Mas fazia tudo cantando o fado, como muitos anos depois nos contou. Naquela casa o dinheiro não era muito, mas nunca faltou música. Nos fins de semana, o pai, Emílio, tocava guitarra para sua Isaura cantar. Emílio era um operário exemplar, mas amigo da alegria e chegou a compor um fado para a filha, que foi capaz de lembrar da música 80 anos depois, quando já não tinha voz para cantá-lo direito.

A menina era estudiosa, orgulhava-se de sempre dividir o primeiro lugar da classe com sua maior amiga. Sonhava em ser advogada, o que era um sonho alto para uma mulher à época, ainda mais vinda das classes populares. O pai acabou não permitindo que ela prosseguisse os estudos, apesar dela ter ganho uma bolsa por conta da sua excelência. Perdoar ela perdoou, mas nunca esqueceu.

Ela nunca via a hora de chegarem as férias. Quando podia viajar para a casa do bondoso Tio Afonso, que morava no interior com sua esposa Virgínia e as maiores amigas de Fernanda, as primas Natércia e Yen, sem falar no primo Eurico, também um bom companheiro de brincadeiras. O Tio, trabalhado em um cartório numa cidadezinha pequena, muitas vezes voltava para casa carregado de ovos e outros víveres que os camponeses lhe davam em pagamento. Omelete ali nunca faltava. As primas eram bem diferentes. Yen era mignon, delicada, tímida, com olhinhos brilhando de bondade e gentileza. Natércia, chamada de Teta, era expansiva, brincalhona, de gênio fortíssimo. Ela e Fernanda foram as melhores amigas por toda a vida, mesmo com um oceano a separá-las.

O tempo ia passando e a menina virou moça. Hora de trabalhar fora de casa para ajudar o orçamento. Virou atendente da loja mais chic de Lisboa da época, a Casa Ramiro Leão, instalada em um imponente prédio no Largo do Chiado, um local nobre de Lisboa. Ali a mocinha tinha que trajar-se com rigor e manter uma aparência impecável: rosto pintado com elegância, sem exageros, cabelo bem penteado e preso e eterna disposição a sorrir para a clientela. O supervisor era um senhor de idade perfeccionista mas gentil e bondoso. Adorava a maneira pela qual a nova funcionária, uma das mais jovens, sabia receber e conversar com os fregueses e freguesas, com uma gentileza digna que agradava a todos.

Agora a moça Fernanda já tinha alguma liberdade, não muita porque o pai sempre vigiava seus passos. Uma vez ou outra, saindo do trabalho extenuante, várias horas em pé, podia tomar um pingado no Nicola ou então entrar na livraria a folhear um romance. Seu horizonte intelectual também havia se ampliado e no contato com colegas e familiares ela tomava consciência política, o que era perigoso por conta da ditadura de Salazar.

Segundo ela contava, certa vez o ditador propôs um plebiscito para saber quem era a favor de eleições. Ao que parece o voto era aberto e não secreto e Fernanda votou a favor das eleições. Foi chamada a depor pela temida PIDE, a cruel e sanguinária polícia política do regime. Quando perguntada, respondeu com simplicidade, fazendo-se de moça ingênua:

– Ora, havia duas opções, eu simplesmente votei em uma.

Os agentes da PIDE entreolharam-se, sensíveis como uma pedra, e chegaram à conclusão que a mocinha não sabia de nada e não representava perigo.

Talvez pensassem que mulher, ainda por cima bonita, não podia ser inteligente, não podia ter consciência política.

Estavam duplamente enganados. E mal sabiam eles que aquela história atravessaria o Atlântico e seria contada e recontada por aquela moça a seus filhos, com a alegria de quem utilizou a inteligência e a graça para enganar a repressão.