/DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 6 – SÃO FRANCISCO, A CIDADE

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 6 – SÃO FRANCISCO, A CIDADE

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 6
 
SÃO FRANCISCO, A CIDADE
 
Parti de Urucuia antes do sol nascer. O burrinho pedrês iria enfrentar seu desafio maior: setenta e três quilômetros de estrada de terra. O nome dele é uma homenagem a um conto de Sagarana com o mesmo nome. No sertão todo mundo sabe que o burro é inteligente e o cavalo é burro. Burrinho que se preza percebe que à frente há uma cobra, se recusa a trilhar um caminho por demais inseguro (margeando um precipício, por exemplo) e embora vá sempre no seu ritmo, é capaz de levar cargas por longas distâncias. Se não fossem as tropas de burros o Brasil teria sido inviável durante mais de trezentos anos.
O meu burrinho pedrês também é corajoso e resistente. Mas odeia uma estrada de terra. Esta então, nem se fala. É esburacada, tem trechos que parecem frisados fazendo o carro tremer todo e vira e mexe passa um cavalão-desutilitário obrigando meu burrinho a comer poeira. O pior, todavia, não é isso e sim os trechos em que há uma areia fina que faz o carro rebolar e ameaçar derrapar. Fico pensando em como fazer se atolar na areia em debaixo daquele solão. Por isso só viajo com várias garrafas de água e uma sacola grande, cheia de comida. É meu co-piloto em forma de biscoito, bolo, sanduíches e chocolate.
Mas ver o sol brotar no cerrado, longe de qualquer presença humana valeu demais. Parece que o mundo está nascendo de novo. Riobaldo diz que “Sertão é o sozinho”. Não viajei para ficar só, mas para ficar comigo mesmo, já que “sertão: é dentro da gente”. Essa música do silêncio me acalma e me faz sonhar. Quando vinha outro carro eu despertava, depois de alguns minutos voltava a mergulhar no nada. Tentava aproveitar o momento e tomar como norte a observação de Riobaldo, para evitar que acontecesse comigo o mesmo: “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada.”
Na primeira hora andei só trinta quilômetros, depois o burrinho se animou a andar mais rápido e conseguimos atravessar nosso Liso do Sussuarão em pouco mais de duas horas. Ele e eu gostamos de cavalgar ao som do bom e velho rock’n’roll. Gosto de samba, de jazz, de muitos tipos de música, mas o bom e velho rock é o melhor amigo do homem na estrada.
Chegamos a Pintópolis, terra natal dos pintopolitanos. Nunca pensei que fosse bendizer a existência do asfalto. Alimentei o burrinho no primeiro posto de gasolina e em seguida fomos tomar a barca que nos levaria a São Francisco, uma travessia do rio Chico que não dura nem meia hora. À margem do grande rio, um grupo de mulheres lavava louça. Depois de atravessar, o burrinho teve que encarar mais dez quilômetros de estrada de terra.
Riobaldo diz da cidade em que chegamos: “formosa cidade de São Francisco – que é a que o rio olha com melhor amor.” Pudera. Além de levar o rio no nome, a cidade é toda voltada para ele, a começar da Igrejinha que se avista bem no alto da margem. O principal restaurante, o Peixe Vivo, marca registrada da cidade, é construído em um mirante em frente ao rio. Sem falar que a cidade também é conhecida pela movimentada praia fluvial que ocorre durante alguns meses do ano, de junho a meados de outubro, no máximo, antes que ocorra a cheia do rio.
Como bom carioca, falou em praia, lá estou. Observo que está menos caótica do que da última vez, descubro que a prefeitura regulamentou e taxou fortemente as barracas. Em 2016 eram uma dúzia ou mais, agora só há duas belas barracas brancas absolutamente iguais. Inclusive na péssima música que tocam, breganejo da pior qualidade, com o perdão da redundância. Em uma competição muito disputada, decidi que a pior de todas foi uma em que o sujeito dizia que depois da reconciliação eles faziam amor chorando. Esse era o refrão, cantado a plenos pulmões. Há também as músicas temáticas, que atestam a mesma indigência mental e cultural, como a dedicada ao vaqueiro, que diz assim: “Gado, cavalo, cachaça e mulher, é disso que ele gosta, é isso que ele quer”. Vade retro.
À época de Riobaldo, grosso modo durante a última década do século XIX, São Francisco era uma cidade-porto importante, quando o rio era navegável e funcionava como a grande estrada do sertão. É para lá que Vupes, o comerciante alemão de instrumentos agrícolas se dirige, contratando Riobaldo como guarda-costas porque “sertão agora aqui muito atrapalhado, gente braba”. E o velho Riobaldo lembra ao doutor um fato notável. Dois temíveis chefes de jagunços, Andalécio e Antonio Dó, tentam invadir a cidade de São Francisco com uma tropa de dois mil e quinhentos cavaleiros. O povo local faz barricadas e resiste por horas, frustrando o ataque.
Quando caminho pelas ruas, percebo sinais da anterior grandeza de São Francisco, bem como da atual decadência: belas casas térreas com pintura descascada, portas de madeira ruídas ou simplesmente em ruínas. Claro que não são todas, mas dá para perceber que o apogeu de São Francisco ficou para trás. Hoje é uma cidade com quase sessenta mil habitantes. Há muito comércio, mas estava às moscas, os vendedores com aquele olhar de tédio desesperado que bate quando a clientela some.
Numa das principais lojas da cidade, a americanização se faz presente. Há um setor chamado Espaço Country, dedicado a botas e botinas, sem falar em chapéus, de estilo cowboy ou do que eles imaginam ser o cowboy. Na verdade, Riobaldo já fala disso: “Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa de couro, acham que traje de gibão é feio.”
Aproveitando a modernidade imperante, bebi café sem açúcar em uma padaria e depois tomei sorvete de menta com chocolate e água com gás enquanto o burrinho pedrês era lavado e perfumado com shampoo em um lava-jato próximo, ele merece.
Se o dia começou com o sol nascente no sertão, foi devidamente encerrado com o por-de-sol no rio São Francisco, a atração mais famosa da cidade que leva seu nome.
Amanhã bem cedo parto para Grão-Mogol.
 
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
 
Foto: M.A., sol nascendo no sertão, estrada Urucuia-Pintópolis, agosto de 2019