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O maestro e o carpinteiro

O MAESTRO E O CARPINTEIRO

 

Naquele fim de semana estava em Cabo Frio, mas não era para pegar uma praia. Tinha ido assistir a um encontro de corais que ocorre há mais de trinta anos. O mundo da música coral é muito rico, há corais de todos os tipos, de variadas propostas. Um dos corais mais bacanas a se apresentar foi o maravilhoso Boca Que Usa, de Niterói, premiado no Brasil e no exterior. Eles adotam a regência compartilhada, ou seja, cada um dos componentes é ao mesmo tempo cantor-cantora e maestro. Não sei se é esse o segredo, reunir tanta gente que entende profundamente de música. O que sei é que o resultado é uma delícia de se ouvir. Busquem na Internet que vocês verão.

 

Mas eu não estou aqui para fazer crítica musical e sim para contar uma história. No ano em que fui assistir, o encontro recebia dois corais internacionais, um polonês, bastante bom, e outro, excelente, vindo da Argentina. Este último era regido por um lendário maestro, que costumava levar seus componentes à loucura por causa de suas exigências, como soube da boca de uma senhora que participava do coral. Era um tipo baixinho, mais para o gordote, mas com uma vasta cabeleira.

 

No dia seguinte às apresentações, eu tomei café da manhã juntamente com o pessoal dos corais. Estavam todos criticando duramente o comportamento do maestro argentino, seus “ataques” e sua postura pouco simpática. Preferi não falar nada, afinal eu era (e sou) um leigo total em meio a músicos talentosos. Mas não podia concordar com eles. Eu observara o exigente maestro durante a apresentação do seu e de outros coros. Regendo, sua concentração era total, absoluta, um verdadeiro mergulho num mar de sons. Assistindo outros corais ele também prestava enorme atenção, fosse para detectar um erro, que ele fazia questão de lamentar contorcendo o rosto em uma careta, fosse em um trecho sublime que fazia sua face se iluminar.

 

Entendo e acho correta a postura mais democrática do coral de Niterói, bem como sua crítica à concentração de poderes e de capacidade avaliativa nas mãos do regente argentino. Mas o fato é que eu senti uma enorme simpatia por alguém que ama tanto a sua arte que pouco se importa com aquilo que outros venham a pensar. Reza a lenda que um dos maiores maestros da história, Herbert Von Karajan, era insuportável, indelicado, egocêntrico ao extremo. Ele acreditava que um bom maestro de orquestra só estava realmente preparado depois de uns quinze anos praticando, regendo com afinco.

 

Certa vez Karajan viu um marceneiro trabalhando em sua casa. Ficou impressionado ao ver a maneira como o artesão tocava e acariciava cada peça de madeira, demonstrando que amava profundamente o que fazia, o que Karajan considerava ser um requisito necessário ao artista. Aquele maestro argentino era exatamente assim, um apaixonado. Não havia como condená-lo.

 

Sou daqueles que admiram a arte e perdoam o artista.