500 ANOS LENDO O MESMO JORNAL
Entrei no curso de jornalismo da PUC em 1979 para depois abandoná-lo no ano seguinte e ir cursar História. Meus ídolos durante a adolescência, além de Doval, o mitológico centroavante argentino que abriu mão da sua seleção para ser carioca e jogar no Flamengo, eram os jornalistas. Eu lia uma miríade de jornais alternativos além do grande (em todos os sentidos) jornal da época: o Jornal do Brasil. Basta dizer que um dos seus cronistas era Carlos Drummond de Andrade. Por isso, na hora de escolher a carreira, não tive dúvidas. Toda a vez que eu passava pelo velho prédio do JB perto do porto eu dizia: “Um dia ainda vou trabalhar aí”.
Fiquei menos de dois anos no curso de jornalismo, mas guardei uma lembrança muito forte de dois professores. Primeiramente do grande mestre Eduardo Neiva, que antes de adentrar na Teoria da Comunicação propriamente dita nos fazia ler Filosofia. Suas aulas eram maravilhosas e eu me divertia muito com seu “falso mau-humor”, que não deixava de ser uma postura filosófica diante daqueles pirralhos e pirralhas que éramos nós.
Outra professora absolutamente notável chamava-se Rosangela Nunes. Neiva era mais clássico, Rosangela mais pós-moderna: com ela líamos Foucault e companhia. Se Neiva se preocupava em nos dar uma base filosófica, Rosangela implodia nossas certezas, antes mesmo de as tivéssemos. Era um exercício intelectual extenuante e às vezes exasperador, mas sempre muito rico. Sem falar que a maneira dela falar era apaixonante. Eu era apenas um garoto e desconfiava muito daquela incerteza toda, por vezes achava tudo um exagero. E ficou pior no dia em que Rosangela disse a um aluno (talvez tenha sido eu) que ousou mencionar uma notícia de jornal:
– Eu não leio jornal há muito tempo, não há necessidade.
E ficou por isso, sem maiores explicações. Eu achei um absurdo total e completo ela ter dito isso em pleno curso de jornalismo. E ainda hoje, quase quarenta anos depois, continuo lendo o jornal todos os dias. Quando viajo, não importa para onde, a primeira coisa que faço é comprar o jornal e ler até os classificados para ter uma ideia do lugar.
Ao fim e ao cabo acho que a Professora Rosangela estava certa. Não há a menor necessidade de ler o jornal no Brasil. Estamos lendo o mesmo jornal há 500 anos:
O país nasceu como uma colônia exportadora de matérias-primas. Sai a colonização portuguesa e entra a invasão do american way of life e nada mudou. Sai a Companhia das Índias e entram muitas outras. Sai o pau-brasil e entram a soja e o minério de ferro.
A elite do país pouco se importava com a população local, vista por ela apenas como corpos a serem explorados para o seu enriquecimento, mesmo que isso significasse a morte em massa destes seres inferiores. Mudou?
Uma das coisas que mais espantou ao nosso primeiro cronista, Pero Vaz de Caminha, foi a nudez de índios e sobretudo de índias, com seus peitinhos e bundinhas de fora, sem falar nas “vergonhas” à mostra, devidamente raspadas:
“Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”
Ora, passaram-se 500 anos e qual é o tema mais discutido neste país? A destruição das universidades públicas? A entrega da Petrobrás às companhias estrangeiras? O desmatamento da Amazônia? O extermínio de jovens negros? A reforma pseudo-trabalhista contra o trabalhador? O cruel abandono da Saúde Pública e muitas outras maravilhas? Nada disso. O tema mais debatido no momento em que escrevo é:
A BUNDA DA ANITTA
Rosangela tinha razão: há 500 anos que ninguém precisa ler o jornal para saber o que é o Brasil.