/Histórias do Alvito – “Não está morto quem caminha”

Histórias do Alvito – “Não está morto quem caminha”

Histórias do Alvito
“Não está morto quem caminha”
Era uma das frases preferidas do meu pai. Ele disfarçava sua filosofia em forma de frases soltas, músicas que cantava com voz maciça aveludada e histórias que não se cansava de contar e nós, de ouvir, pois havia sempre tanta energia nelas que dava para desconfiar de muitos sentidos. Aos poucos, fui entender que aquilo era um corpus e que, nesses fragmentos variados, estava o que o meu pai havia aprendido nesta vida.
Papai gostava de entoar a frase feito um mantra, ou melhor, feito refrão de marchinha de carnaval. Falava em castelhano, carregando na pronúncia: “No es muerto quién camiña”. Depois de sofrer um infarto, ficou com apenas metade do coração. Bom baiano, brincava dizendo que ao menos era a metade boa. Continuou caminhando e viveu ainda preciosos seis anos.
Minha caminhada de hoje não era tão dramática, pelo contrário. Embalado ao som do mais puro rock’n’roll, resolvi andar de Santa Teresa até o centro da cidade, um percurso de pouco mais de meia hora com perna comprida mas sem pressa. Ia uma consulta médica. Caminhar faz bem ao pensamento como já o sabiam os gregos que passeavam pelos Jardins de Academos. Guardadas as devidas proporções, pois sou apenas um aprendiz de professor e escriba diletante, o fato é que este texto foi todo pensado enquanto eu andava pelas ruas de São Sebastião.
No caminho, passei por um senhor de cabelos totalmente brancos, fazendo da calçada o seu leito, a sua casa, o seu improvisado, selvagem e desconfortável refúgio. Ao lado dele, um livro de capa branca com o título: O Triângulo das Bermudas. A ironia da cena é que, mesmo à vista de todos, ele havia sido engolido pela grande cidade da mesma forma que o Triângulo das Bermudas engole barcos e aviões.
Continuei a caminhar, e entrei na rua da Relação. Imaginem só que alegria para um rosiano-proustiano-machadiano (em breve shakesperiano também), acostumado a buscar relações e metáforas feito criança procurando Wally. Mas, calma com o andor, o nome não é literário e sim judiciário, vem do Tribunal da Relação, um tribunal de segunda instância que funcionava no Império. O prédio ainda existe e hoje é uma escola de arte, melhor assim. Fico sabendo que o Tribunal da Relação veio de Portugal, mas não encontrei a relação entre o tribunal e o seu nome (perdoem-me, há trocadilhos inescapáveis).
Chego no consultório e sou atendido por uma jovem e gentil dermatologista, baiana que nem meu pai. Pagão de carteirinha, tomo a origem dela por bom augúrio. Mas vamos aos fatos: a doutora tira uma lasquinha do meu ombro direito menor do que uma lentilha. Ainda bem que não era a libra de carne (quase meio quilo) que Shylock queria arrancar do corpo de Antonio em “O Mercador de Veneza”. Antonio passa bem, obrigado, foi salvo por Pórcia, uma mulher travestida de advogado, cuja retórica brilhante impediu a carnificina. Mas isso é coisa para “Pedacinhos de Shakespeare”, a série.
No meu caso, a doutora não cortou um pedacinho de Shakespeare e sim de Marcos Alvito, em seguida dando pontos com mão de fada. Para me tranquilizar, disse ser quase certo não se tratar de nada preocupante. Só ela se contenta com esse quase. O destino da gente cabe em um grão de cereal.
A relação que consigo estabelecer entre tudo isso? É no quase que moram alguns dos maiores perigos da existência e o triângulo das Bermudas está em toda a parte, sempre de boca aberta para nos engolir, pois viver é negócio muito perigoso.
Mas, haja o que houver, a frase de papai, brasão, escudo e bandeira, estará sempre comigo:
— “Não está morto quem caminha”