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A caminhada – Parte 1

A CAMINHADA – PARTE 1

“No está muerto quien camina”

(Provérbio que meu pai adorava)

O finalzinho da praia do Arpoador guarda um segredo. Parece que a praia terminou, mas quem tiver calma vai perceber um pequeno trecho de areia entre duas pedras. Ali forma-se uma espécie de remanso de águas calmas. Os cariocas, sempre marotos, chamam esse local de Coocon, lembrando um filme em que idosos rejuvenesciam depois de mergulharem numa piscina mágica. É que aquele pedacinho do Arpoador costuma ser basicamente utilizado por pessoas de idade, atraídas pela calma das águas, praticamente sem ondas.

Era para lá que ele caminhava, todas as manhãs. Depois do café, despedia-se da família com gestos lacônicos, todos já sabiam aonde ele ia. Abria a porta sorrindo para todos, para que pensassem que aquilo era para ele um prazer. Era, na verdade, um pesadelo que ele sabia necessário. Era o que lhe restava de mente racional impondo-se sobre os pensamentos que fugiam em todas as direções feito uma multidão desbaratada a tiros de metralhadora. Era a sua hora de enfrentar o medo. E não há medo pior do que o medo de tudo, o medo indefinido, o medo sem cara, o medo que veste teu corpo e invade tua alma.

Mas ele conseguia, todos os dias conseguia entrar no elevador. Atravessava a praça e começava a caminhar no calçadão. Meses antes ele estava voando na esteira da academia. Agora se arrastava feito uma cobra preguiçosa, enquanto senhores de 80 anos passavam por ele a “alta” velocidade. Olhava para as mulheres mais lindas sem compreender ou se emocionar com sua beleza, apenas sabia que eram belas, como se tivesse lido isso no dicionário. Por de lado o orgulho, calçar as sandálias da humildade. É a primeira coisa que você tem que deixar que a doença te ensine. E há muitas outras.

Pisar na areia era bom, aqui a memória da infância se impunha. Tatuí. Picolé. Mate misturado com limão. Prancha de isopor. Se ele enfiasse o pé na areia com vontade aquilo tudo poderia voltar? Sabia que não. O jeito era seguir em frente. Caminhar na direção do pedacinho de oceano que lhe cabia. Lá estava o que agora era sua turma: homens e mulheres um pouco castigados e vergados pelo tempo mas ainda de pé. Ele sentia ter 300 anos. Agora vinha a parte mais difícil. O ritual que se impunha deveria culminar com um mergulho naquelas águas tão generosas. Todos os dias ele lançava seu corpo ao mar, lutando contra a mente tumultuada a lhe dizer:

– Não mergulhe, você vai morrer

E era com esse pensamento que se banhava, brevemente, para emergir brandindo a constatação óbvia a tentar debelar o pânico: mergulhei e estou vivo, está vendo só?

No retorno havia algum sentimento de vitória, logo prejudicado pela lembrança de que tudo recomeçaria amanhã. Uma batalha de cada vez. Será que amanhã teria coragem de abrir a porta na direção do medo? Amanhã saberia.

(continua amanhã)