/A caminhada – Parte 2

A caminhada – Parte 2

A CAMINHADA – PARTE 2

Chegar em casa era bom. Feito encontrar um abrigo antiaéreo no meio de uma guerra. No estado em que se encontrava, não podia fazer nada para ajudar, nem tampouco podia ser ajudado. Só ele poderia lutar contra sua própria mente. Falava pouco, a comunicação era lenta, difícil e dolorosa. Foi deixado em paz. Na fase mais dura, coloria mandalas. Até que a velha amiga lhe salvou a vida: a literatura veio em seu socorro. Depois da ida ao Arpoador passava o dia lendo. Releu a Montanha Mágica, leu romances policiais. De alguma forma, a leitura fazia uma ponte com seu antigo eu. Não tinha certeza de estar entendendo tudo que lia, mas a leitura mantinha a fera à distância, acalmava-o e fazia passar o tempo.

Porque o tempo havia se alongado e era possível pegar os segundos nas mãos. Os dias, que antes pareciam voar, agora eram uma interminável sequência de gestos e atos que era necessário escalar feito uma montanha.

Comia sem prazer, para se alimentar. Não havia desejo, de qualquer espécie. Apenas uma luta entre o desespero e a vontade de enfrentar tudo aquilo. E ia dormir muito cedo, logo depois do escurecer, pensando que talvez seus sonhos encontrassem um caminho de volta.

Tudo começara em uma viagem. Uma viagem, dizia ele a todos, para buscar o axé de seu pai, cuja família viera do Recôncavo Baiano. Sua vida estava um caos: livros encaixotados no novo apartamento, muitas contas a pagar e pouco dinheiro, coração alquebrado por mais uma separação. Mas ele virou as costas para tudo, comprou uma passagem para a Bahia e foi queimando o asfalto até Salvador e depois até Santo Amaro da Purificação.

A Bahia é a Bahia. E lá estava tudo bem: ficou em um humilde alojamento, mas na Casa do Samba de Santo Amaro. E todo dia tinha samba de roda ou capoeira ou os dois. Conheceu pessoas e suas histórias. Aprendeu e se emocionou. Tinha chegado do Rio em plena forma física, fazia musculação e até corria em provas amadoras. Por isso resolveu dar uma corrida em Santo Amaro.

Afastando-se do centro da cidade, chegou a uma estrada pavimentada. Era janeiro e por causa do calor ele foi correr à noite. Aquela estrada, sem casas ou comércio em torno, era iluminada pela lua e pelas estrelas e ele corria ouvindo somente sua respiração e suas passadas. Mais do que uma corrida, parecia uma meditação. Ele correu cerca de 4 km até uma fábrica de papel abandonada e depois retornou sem dificuldade.

A corrida havia sido tão prazerosa que ele quis repetir a dose. No dia seguinte voltou à mesma estrada, mas ele não era o mesmo. Sem nenhum motivo aparente, quando se aproximava da velha fábrica, teve a mente tomada pelo pensamento de que iria morrer a qualquer segundo. Não era algo corporal, não estava passando mal. Era uma espécie de alucinação que viera para ficar. Ao invés de voltar, ele continuou correndo, agora na direção do céu de estrelas. Ele se sentia cada vez mais leve. Foi tomado pela idéia que não iria morrer e sim fundir-se àquela noite estrelada, àquele céu.
 
Bastava continuar correndo…