/A caminhada – Parte 3 (final)

A caminhada – Parte 3 (final)

A CAMINHADA – PARTE 3 (final)

Quando ele corria na direção da noite profunda,  lembrou-se dos filhos. Começou a retornar. Foi assaltado pela ideia de que não conseguiria voltar, o que logo se transformou em um medo feroz de que fosse ficar esgotado a ponto de parar de correr e se deitar na estrada, ficando ali até que o encontrassem. Uma pontinha de razão lhe dizia que simplesmente continuasse, andando, se arrastando, do jeito que fosse, mas que continuasse.

Caminhando, ele conseguiu chegar até a Casa do Samba. Não sabia o que estava acontecendo, mas o dormitório vazio estava povoado dos seus fantasmas. Outra alucinação começou a castigá-lo. Era a certeza de que não poderia se deitar. Se o fizesse, não viveria. Feito animal enjaulado, começou a andar no dormitório pra lá e pra cá, tentando afastar o sono. Esgotado, sentou-se na cama e sem saber como, dormiu.

No dia seguinte não conseguia entender o que havia acontecido. Ficou mais alguns dias em Santo Amaro e voltou para o Rio. No ônibus, estava alegre. Cantava, contava histórias, fazia brincadeiras com os outros passageiros. No Rio, o comportamento eufórico continuava, mas bem acima do tom. Ele, que nunca fora disso, certa vez foi caminhando de Ipanema ao Leblon elogiando de forma poética e educada cada uma das mulheres bonitas que encontrava. E não foram poucas. Quando as divisava, alguns metros antes, em segundos era capaz de pensar algo para dizer. O cérebro estava a mil por hora.

Viajou para Minas para encontrar-se com uma mulher. Lá ocorreu outro episódio: passou uma noite em claro com a certeza de que iria morrer a qualquer momento. Depois passou o dia assim também. Enquanto esperavam o ônibus em uma padaria, viu um senhorzinho mineiro muito simpático que viera comprar pão. E pensou: que ironia, ele vai viver mais do que eu. Tudo era interpretado como um sinal da sua morte. Ver na televisão da padaria o do Brasil perder para o Uruguai no futebol de areia. Ficar encostado no muro de uma igreja onde havia um cemitério e em frente uma seção dos Alcoólicos Anônimos chamada Caminho do Céu ou algo parecido.

Voltou ao Rio e teve o pior momento: a sós com sua mãe e com seu filho adolescente, ficou sem conseguir falar e novamente assolado pela certeza do fim iminente. Agora a aposta era mais alta: se ele morresse, tinha a certeza de que aquilo causaria a morte de toda a sua família. E o seu maior terror era que sua mãe e seu filho percebessem o que estava se passando. Por isso ele arrancava de si mesmo um sorriso.

Ao menos este episódio foi decisivo. Depois disso, buscou tratamento. Passou pela fase já descrita, quando lutou para melhorar com suas caminhadas à praia. Depois passou novamente a se exercitar na academia. Por fim, voltou a seu lugar preferido na face da Terra: a sala de aula. Foi o que o curou. Os pensamentos, de início um pouco lentos, logo se tornaram cristalinos, as palavras voltaram a fluir. Agora seus sorrisos eram verdadeiros.

Demorou oito anos para escrever esta história, para arrancá-la de dentro do peito. Todos lhe diziam que não fizesse isso. Ninguém deve atirar no próprio pé. Irão pensar todo o tipo de coisa de você. Mas ele pensa em tantas pessoas, hoje em dia e ao longo da história, que ficaram diante desse monstro. Tantos que tiveram que enfrentar sua própria mente, tentar se libertar da prisão em que ela às vezes se torna. Isso faz parte do humano, talvez até do humano em excesso. Sabe que há histórias muito mais duras e graves do que esta. Mas ele só pode contar a sua história.

Ao longo de todo este processo ele não parava de pensar no samba preferido de seu pai,  aquele do  Vanzolini:

“Reconhece a queda, e não desanima,

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”

Foi o que eu fiz.

E agora estou aqui escrevendo estas histórias para vocês :-).

A caminhada continua.