/A fábula do Hamster no tempo da peste

A fábula do Hamster no tempo da peste

Era no tempo da peste, em que os quatro cavaleiros do Apocalipse pintavam, bordavam e eram donos da cocada preta, branca e amarela: Jair, Wilson, Marcelo e Edir. Jair queria fazer o serviço da destruição todo sozinho e o mais rápido possível e pretendia chamar o Exército, mas os outros três reivindicaram sua parte. Wilson preferia usar helicópteros e metralhadoras, Marcelo, o mais fleugmático dos quatro, simplesmente não fazia nada e deixava tudo se estragar, enquanto Edir colocava a culpa  no  Diabo e avisava que Deus, que nem as milícias, cobrava uma mensalidade para garantir a segurança.

Enquanto isso, nosso hamster vivia no Monte Alegre, sobrevivendo de amor, literatura e um feijãozinho  que ele fazia de vez em quando. Tentava se manter em forma e sempre era visto naquelas esteiras que levam malas de aeroporto e corredores de academia. Achava que não podia mais correr na rua porque a pata dianteira esquerda estava contundida, mais ou menos na altura do que é um joelho humano. Já estava tudo para lá de Bagdá quando veio a peste. As ruas se tornaram desertos de asfalto, enquanto as grandes mercearias lotavam. Vários machos da espécie se suicidaram por conta da crise de abstinência: não havia mais futebol na televisão. Os hamsterzinhos não puderam ir mais à escola e passaram a infernizar seus pais, literalmente subindo pelas paredes e abanando os rabinhos sem parar.

O hamster da Monte Alegre morava numa caverninha cheia de livros e tinha um estoque de histórias suficiente para ficar lendo durante algumas gerações, embora ele mesmo já não tivesse tanto  tempo de vida assim: seus pelos já estavam acinzentados e já se via tendo que explicar aos mais jovens o que era uma enciclopédia e como se discava um telefone que à época dispensava o adjetivo fixo. Não contem para ninguém, sua vida era boa, com os altos e baixos de sempre.

Mas aí veio a peste e aquilo que o Hamster fazia voluntariamente e até com prazer – ficar trancafiado na caverna – virou um dever, uma obrigação,  uma medida sanitária extrema e necessária. Bem, ele tinha nascido em 1960, na década da contestação. Mas não queria fazer nada que pusesse em risco a si e aos outros. Ficou quieto no seu canto, lendo, lendo e lendo. Até ler o aviso de um médico que dizia que o exercício ao ar livre não representava perigo. Sendo assim, o hamster ousou colocar os pés, quer dizer, as patinhas, fora de casa.

Correu lentamente, se é que isso é possível. Foi só apreciando as lindas ladeiras do seu bairro. As casas, as flores, o sol já avisando que iria se por. A pequena hamster segurando a mão da sua mãe e com os olhinhos negros brilhando, a olhar um hospital abandonado como se fosse um castelo encantado. Claro que a proximidade da morte, a possibilidade da morte, fazia com que ele se sentisse mais vivo. Podia apreciar toda a beleza de algo tão simples como a tarde de um dia qualquer.

À noite? Ele usou suas patinhas o mais que podia no ritual de bater panelas para espantar o primeiro dos cavaleiros do Apocalipse.

E foi dormir feliz.