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A inglória batalha do pequeno hippie

A INGLÓRIA BATALHA DO PEQUENO HIPPIE

Além de jogador de futebol, camisa dez da Gávea, queria ter sido hippie, sem tomar banho durante semanas, deixar meu cabelo crescer livremente, usar roupas coloridas e largadas. Fazer amor livre. Respeitar a natureza. Arte por todos os lados. Adotar a paz e o amor como lema. Ao invés de lutar contra o poder, tentar criar o não-poder, que alguns também chamam de liberdade. E, acima de tudo, lutar contra a sociedade de consumo. Infelizmente nasci uma década depois, quando o movimento estava no auge eu ainda usava calças curtas. Virei um menino bem comportado, careta e estudioso que tomava banho todos os dias.

Mas sempre houve em mim um coração meio hippie batendo descompassado neste mundo. Tinha quatro anos quando a Ditadura Militar entrou em campo com sua brutalidade e ignorância. Muitos se esquecem que a brutalidade era o meio, mas o fim era a ignorância. Há também quem se esqueça de que a época da Ditadura foi a época da mais violenta americanização da nossa cultura, dos nossos costumes. Foi o momento da implantação definitiva da sociedade de consumo, tão bem cantada por Elis Regina em 1970, na música “Comunicação” (Edson Alencar / Hélio Matheus):

 

“Sigo o anúncio e vejo

Em forma de desejo o sabonete

Em forma de sorvete acordo e durmo

Na televisão

 

Creme dental, saúde, vivo num sorriso o paraíso

Quase que jogado, impulsionado no comercial

Só tomava chá

Quase que forçado vou tomar café”

 

Talvez tenha sido a audição dessa música. Ou então o lado hippie do meu coração. O fato é que eu me recusava bravamente a ser um pequeno consumidor. Quando nossa mãe nos levava, a mim e a minha irmã mais nova, para comprar roupas e sapatos em Copacabana, meu comportamento era insólito. Eu simplesmente me recusava a entrar na loja.

Tinha desenvolvido uma técnica de resistência. Ficava do lado de fora. Dizia que estava vendo a vitrine. Quando minha mãe saía da loja e falava que eu tinha que entrar para comprar um sapato ou uma camisa, eu apontava o dedinho para a vitrine e dizia: já escolhi aquele ali. E não aceitava ponderações. Assim eu não precisava entrar na loja e receber dezenas de ofertas. Os objetos sempre me pareceram o que são: coisas mortas.

Até hoje, tenho uma enorme dificuldade em comprar minhas vestimentas. Meus alunos e alunas decerto hão de lembrar-se das mesmas roupas e quiçá do mesmo sapato que usei durante um semestre inteiro ou mais. Peço desculpas, mas minha falta de elegância sempre foi uma forma de resistência.

Por não pegarem em armas, os hippies muitas vezes foram vistos como alienados. Não se percebe que eles atacavam o coração do capitalismo: o fetiche da mercadoria. Ele é um inimigo mais poderoso e difícil de destruir do que mil Bastilhas, que muitas vezes são destruídas para se colocar outra no lugar, diga-se de passagem.

O movimento hippie abriu muitos caminhos, hoje presentes na luta das “minorias”, no movimento ecológico, no movimento pacifista. Sim, apesar de tudo isso, os hippies perderam a sua luta central: contra a sociedade de consumo.

Mas isso não quer dizer que não possamos continuar lutando.