/A MONTANHA

A MONTANHA

Quando a literatura salvou sua vida pela terceira vez, o fez em um sentido real.  O que sobrara depois do baque e da medicação, plantava-se em um canto do sofá, abrigo anti-aéreo, refúgio imóvel e silencioso. Por efeito proposital do remédio, seu pensamento era um astronauta passeando na lua: lento, pesado e com medo do desconhecido. Cercado por familiares, pouco falava, embora tentasse sorrir, pois ainda palpitavam as obrigações sociais. Preferia que se esquecessem dele, pois o que corria no sangue era a vergonha. Depois das refeições, arrastava-se de volta ao seu cantinho. Ali, apenas uma coisa o mantinha vivo. Um destes objetos retangulares feitos de papel e tinta contendo histórias. Só a ficção lhe movia. Ao menos podia viver a vida das personagens em sua imaginação. Os livros mais volumosos eram bem vindos. Começou a reler A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Seria errado dizer que não tinha pressa de terminar. Mais acertado seria dizer que não queria que terminasse, queria ficar para sempre dentro de alguma história. Não era monge budista, mas seu eu estava quase apagado. Quase. Havia ainda uma luz, uma força que parecia com os desenhos animados em que se consegue sair de um pântano puxando os próprios cabelos. “Carece de ter coragem”, diria o Menino Diadorim. E coragem ele teve, para subir aquela montanha nada mágica e sair do outro lado. Mas não conseguiria sem sua companheira de caminhada,  sua estrela-guia,  o amor à literatura.