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A virada da Maré

A VIRADA DA MARÉ

Estava parecendo missão impossível. O primeiro Uber disse que lá não ia, porque o aplicativo informava ser área de risco. O segundo Uber foi super-simpático, já tinha trabalhado lá, conhecia tudo e ia me levar. Pena que o carro dele não deixou. Primeiro paramos na Avenida Brasil e empurramos para o carro pegar: eu, ele e um solícito vendedor de biscoitos. Da segunda vez foi mais grave e ele estacionou o carro. Por sorte minha, perto de um ponto de táxis. Para escapar ao engarrafamento, entramos pela favela, ou melhor, pelas favelas, até chegar à Nova Holanda.

Duas semanas antes eu havia sido convidado pelo escritor e jornalista Marcelo Moutinho para dar uma aula para um pré-vestibular comunitário na Maré, que estava sendo organizado pela professora e jornalista Daniela Name. Eu topei na hora. Dias depois, resolvi perguntar quantos alunos e alunas tinha a turma. Duzentos e quarenta! “Mas ainda estamos nos organizando, só devem ir uns cento e poucos”. Mesmo tendo alguma experiência em sala de aula, passei duas semanas aterrorizado, pensando em como iria falar sobre dois contos de Guimarães Rosa em uma hora e meia para mais de cem jovens.

E finalmente lá cheguei, neste espaço lindo e arejado chamado Galpão das Artes, sendo muito bem recebido por uma das responsáveis pelo projeto. Além de um mar de cadeiras, havia um espaço muito parecido com uma arquibancada. O bom de uma aula, no caso, de uma palestra, é que por mais que você esteja preparado, tudo pode dar errado. É como a vida! O público é um animal selvagem a ser domado. Mas sem chicote, só na base da sedução. Você só tem a palavra, nada mais.
Eu não consigo descrever o que aconteceu naquela noite. Diante de mim não havia um público. Havia um corpo pulsante de desejo. Desejo de aprender, de crescer, de ir além. De caminhar de mãos dadas com a literatura na direção do desconhecido, na direção da descoberta. Deve ter sido mestre Rosa que lançou sobre eles um feitiço, um sobrelégio. O fato é que não piscaram diante do enigma de “A terceira margem do rio” nem se enfadaram com a busca metafísica de “O espelho”. Eu estava profundamente emocionado.

Depois da palestra. Uma moça e sua mãe pediram uma foto comigo. As duas estudam juntas. Outras moças também quiseram uma recordação da aula na forma de uma foto com o palestrante. Meu amigo Moutinho, sempre brincalhão, mandou na lata: “Alvito Popstar”. Respondi de bate-pronto:

– Moutinho, é a força da literatura, é o encantamento de Guimarães Rosa, operando milagres!

Na volta, meu sentimento era um misto de alegria e revolta. A alegria de renovar a esperança diante daqueles jovens. E a revolta de saber que uma educação que permita o sonho e a libertação é sistematicamente negada a estes e a milhões de outros jovens Brasil afora. Essa seria a nossa grande transformação, nossa grande virada.

Para terminar, duas coisas. Se aquela tivesse sido minha última aula, eu ficaria feliz. Por fim, se eu soubesse o que viria a acontecer naquela noite, sem Uber ou táxi, teria sido capaz de ir caminhando para assistir à virada da Maré.