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Camisa dois

Era o contrário do menino maluquinho, era o menino certinho. Estudava para tirar nota boa, obedecia aos pais e adorava a irmã mais nova, a gente nunca brigava. A única paixão alucinante, que me tirava do sério, era o futebol. Nem que fosse de botão. Por isso não era nada de mais que sonhasse sempre o mesmo sonho, já contei aqui. Camisa dez do Flamengo, Maracanã lotado e eu fazendo o suado gol da vitória que nos dava o campeonato, levando a galera a gritar meu nome em triunfo. Quando me tornei adolescente descobri, aterrorizado e indignado, o que era o mundo. O sonho do camisa dez sumiu, névoa que antecede um dia de calor infernal. Hoje, aos cinquenta e nove anos, mesmo me sentindo um garotão de trinta e sete, pensei que nunca mais fosse sonhar algo parecido com meu delírio de infância. Pois ontem sonhei que era jogador. Mas foi um sonho devidamente adequado ao princípio de realidade, se me permitem a brincadeira. Não era final, muito menos no Maraca. Era apenas um jogo do campeonato de bairro. De camisa dez, cérebro e craque do time, passei a entrar em campo com a humilde camisa dois de lateral-direito. Virei um defensor com direito a se arriscar eventualmente no ataque. Na primeira bola que me passaram devolvi com o joelho, demonstrando uma total falta de intimidade com a pelota. Me animei a avançar e quando uma bola sobrou, dei um chute torto e fraco. Por milagre, o goleiro não conseguiu defender e a bola foi para córner. Não. Não subi gloriosamente acima do zagueiro adversário e cabeceei para as redes. Um companheiro de time caridosamente me passou a bola na pequena área e mesmo de canela consegui empurrar a bola para o gol.Foi um sonho adaptado às novas circunstâncias de quase sessentão. Mesmo assim, e aqui devo confessar algo que todo bom peladeiro sabe, depois do gol eu me tornei novamente um menino.