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Cartola que me perdoe

CARTOLA QUE ME PERDOE
 
Foi a primeira e única vez que sofri uma indelicadeza no mundo do samba.
 
Eu tinha um aluno singular pela educação, pela gentileza e pelo amor à futura profissão. Além disso, era e é um apaixonado por samba e futebol. Hoje é um professor dedicado e querido por seus alunos. À época ele estava fazendo um estágio no Centro Cultural Cartola, ao pé do Morro de Mangueira. Como eu dava cursos sobre samba e também sobre História Oral, ele me convidou, juntamente com outro excelente aluno, para dar uma aula sobre História Oral em um curso para pessoas que trabalham com o Carnaval.
 
Fiquei entusiasmado. Cartola sempre foi uma das minhas maiores paixões musicais e foi por conta dele que resolvi torcer para a Mangueira. Ir até lá, conhecer o trabalho do Centro Cultural Cartola e, mesmo que humildemente, contribuir, era para mim um sonho. Não havia nenhum pagamento envolvido, nem mesmo de transporte, mas isso para mim não tinha importância. Ao chegar fui muito bem recebido por meus alunos e tirei uma foto abraçado à estátua de mestre Cartola. Mesmo sem ter subido o morro eu estava no céu.
 
Preparei uma apostila especialmente para aquela aula. A minha ideia era proporcionar condições mínimas para que os alunos pudessem fazer suas próprias entrevistas com personagens do mundo do samba, onde há ainda muitas pessoas cuja trajetória deveria ser conhecida e precisa ser devidamente registrada. Eu não estava desenvolvendo nenhuma pesquisa sobre samba naquele momento. Pelo contrário, levei trechos de uma pesquisa anterior junto à Velha Guarda da Portela para ilustrar a aula com um exemplo concreto.
 
Ali mesmo havia pessoas que mereciam ser entrevistadas como Mestre Cacau, Renato Jamaica, Dona Maura e outros. Nosso diálogo foi muito rico. Eu estava muito feliz em estar ali dando aquela aula, que para mim era uma modesta retribuição a Cartola e à Mangueira. No meio da aula faltou luz, mas eu não me importei e prossegui do jeito que deu, já que eu precisava da aparelhagem de som para tocar trechos de algumas entrevistas. Todo professor tem que ter um plano B e até um plano C para cada aula e não era a primeira vez que a tecnologia me deixava na mão.
 
De repente, sem nenhum aviso, aparece uma senhora, olha para mim fazendo uma careta de nojo. Ela não se apresenta, não diz o porquê de estar ali. Mas começa a afirmar que pesquisadores constroem imagens deformadas da realidade. Lembro que ela não havia assistido um minuto sequer da aula e não me conhecia, nem tampouco meu trabalho. E olhando bem para um sujeito histórica e sociologicamente branco de classe média diz que não precisavam mais que gente de fora viesse estudá-los. E some da nossa vista, sem mais nada dizer.
 
Depois vim a saber que aquela gentil senhora era a presidente do Centro Cultural Mangueira. Tempos depois, nas minhas andanças pelo mundo do samba, ouvi de sambistas muitas queixas em relação ao comportamento da dama em questão. Muitos diziam que ela aprontava poucas e boas fiando-se no fato de ser neta de Cartola, embora isso não fosse propriamente verdade, pois ela é neta apenas de Dona Zica. Aquilo não me surpreendeu, porque o episódio no Centro Cultural Cartola já havia me revelado o verdadeiro caráter (ou falta de) daquela pessoa.
 
Anos e anos depois fico sabendo que a tal senhora tornou-se Secretária Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, sob a “gestão” Marcelo Crivella.
 
É um par perfeito: o prefeito de mentirinha e a neta falsificada.
 
Mestre Cartola, me perdoe.