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CHÃO

Assim me chamam. Há quem diga “fiquei sem chão”. Não é verdade, estou sempre aqui. Sendo pisado por tênis saltitantes de colegiais voltando da escola, felizes em sair da prisão. Em mim ecoa o salto alto da mulher profissional, decidida, indo para o escritório com ar condicionado. Arrastam-se sandálias de catadores de lixo, dia e noite garimpando centavos de plástico, lata ou papel. Rolam as rodinhas dos carros de bebês, que sabem olhar o mundo nascido naquele segundo. Se apoiam bengalas de senhores e senhoras vergados pelo peso da vida. Descem skates me fazendo de onda o que me alegra e dá cosquinhas. Caminha sua dor a cada passo, como um grilhão, o homem que pensa em mais um amor impossível. Em mim se deitam os que me fazem de cama, casa, abraço de pedra. Nem repara que está andando o poeta indo atrás de uma ideia. Flutuam os amantes abraçados, acertando o passo para bater os pés sobre mim no mesmo ritmo do coração. Nessa hora eu não fico sem chão, mas a rocha de que sou feito vira sonho.