COMO SE FAZEM OS JUÍZES
Há aquela famosa música cantada por Bezerra da Silva, criticando o malandro que só é corajoso armado: “Você com revólver na mão é um bicho feroz, feroz”. No meu caso, sou um sujeito tranquilo. Mas uma transformação ocorre se me dão um microfone e uma plateia. Nem sempre digo o que ela quer ouvir.
Naquele dia foi assim. Fui convidado a falar na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Que vem a ser, na prática, a instituição que prepara os futuros juízes. Estava encarregado de uma palestra sobre a minha pesquisa em Acari, em suma, sobre tráfico de drogas, violência urbana e por aí vai. Até aí, tudo bem.
Só que junto à porta do elevador que levava à emérita instituição, havia uma placa dizendo mais ou menos o seguinte:
“SENHORES ALUNOS, FAVOR CEDER LUGAR NA FILA AOS MAGISTRADOS E AUTORIDADES EM GERAL”
Como assim? Somos todos iguais perante a lei mas diferentes perante o elevador? Se um juiz é professor, a obrigação dele é chegar mais cedo do que seus estudantes e não furar a fila. Bem, já podem adivinhar qual foi o começo da minha palestra.
Na verdade, se voltarmos a Debret, veremos que os magistrados da época vestiam-se como autoridades religiosas, afinal em última instância suas decisões emanavam de El-Rei e o a autoridade real vinha de Deus. Lembrando que Portugal é um país nascido da Reconquista das terras aos infiéis (muçulmanos). O primeiro ato de D. João VI ao chegar aqui foi ir até a Igreja agradecer a sorte de chegar aqui vivo.
Daí para frente, não parei. Lembrei do elevador exclusivo para juízes no Forum. Chamei atenção para o fato de que no direito brasileiro uma testemunha não depõe diretamente. Tudo que ela diz é “retraduzido” pelo juiz ao escrivão, ou seja, na prática, tudo que ela diz é reinterpretado pelo juiz, com todas as possibilidades de erro, deformação ou até manipulação que isso representa. Eu mesmo vivenciei um caso em que o réu, dizendo que estava trabalhando na sua “barraca” na favela, levou o juiz a entender que ele estava numa barraca, dessas de camping. Sua Excelência não sabia que na favela “barraca” é um nome genérico para o comércio que normalmente funciona na parte de frente da casa.
Contei aos juízes, presentes e futuros, que tinha notícia de uma festa dada por um traficante, com direito a uísque e tudo, para celebrar sua libertação, comprada a um juiz por 80 mil reais. Isso em 1996. Recordei o promotor de justiça, pago pelo Estado, dizendo em uma sessão do Tribunal do Júri que para ele “bandido é na vala (morto) ou na tranca (preso)”, o que não levara à menor admoestação por parte do juiz.
Será que exagerei? Talvez, mas vejam só a notícia que foi publicada ontem na coluna de Ancelmo Gois, 14 de setembro de 2017, duzentos e vinte oito anos depois da
Revolução Francesa:
“BANHEIRO VIP
Seis defensores públicos do Estado do Rio enviaram ofício ao defensor público geral, André Luís Machado de Castro, pedindo a ele que volte atrás na decisão de permitir a todos os servidores o uso dos banheiros no edifício Menezes Côrtes que eram exclusivos dos ‘doutores’.”
Quer dizer que até nessa hora suas excelências em geral se consideram diferentes?
A palestra? Acho que não saí de lá aplaudido de pé.
Mas ao menos não saí preso.