DE COMO UM PÉ PRETO IMUNDO DEU A VOLTA NOS PEQUEDÊS
Um dos pontos mais importantes da vida militar é o que eles chamam de “apresentação pessoal”. Você pertence a uma coletividade e a menor falha na sua apresentação é percebida e punida. Por isso havia uma inspeção permanente dos coturnos (botas) devidamente engraxados, dos cintos cuja fivela devia estar corretamente lustrada e da nossa farda. Os cabelos não precisavam ser vigiados: havia que cortá-los toda semana no barbeiro do quartel que então assinava a caderneta de corte de cabelo.
Mas havia sempre uma brecha. Eu por exemplo, ao contrário de alguns colegas, jamais comprei uma farda nova, mais bonita, muito menos mandei engomá-la. Usei a mesma farda enorme que vestia como um saco no meu corpo magro. A outra brechinha era o quepe, chamado por eles de “cobertura. Na frente, o quepe tinha uma pala de plástico para dar-lhe um formato fixo. Não sei por que cargas d’água, era permitido, ou pelo menos haviam esquecido de proibir, retirar a pala, o que tornava o quepe totalmente maleável, amoldando-se de maneira confortável à cabeça e gerando um aspecto menos militar, de um boné. Quase todos os soldados do quartel faziam isso. Eu, um aluno, também fiz. Havia outra vantagem, você não precisava se preocupar em perder o quepe porque quando era necessário tirá-lo dava para guardar o quepe sem pala no bolso.
Corta para a nossa visita à Brigada Paraquedista na Vila Militar. É uma tropa de elite, submetida a um treinamento bastante duro, já que eles são preparados para serem utilizados em situações limite. Como é costumeiro nesses casos, a identidade do grupo é forjada a partir da oposição, da diferenciação em relação a outros grupos. A especificidade da Pequedê, como eles eram chamados por nós, espelhava-se em pequenas mas cruciais diferenças no uniforme: o pequedê não usa o quepe verde e sim uma boina vermelha e seu coturno é de um marrom avermelhado, ao invés de ser preto como os outros.
Antes de fazermos uma visita à Brigada Paraquedista que era parte da nossa formação como alunos do CPOR, ouvimos várias histórias sobre o clima hostil existente entre os soldados “comuns” e os pequedês. Os pequedês costumavam referir-se de maneira pouco respeitosa aos outros soldados como “pés pretos imundos”. O que não despertava muita simpatia, digamos assim. Dizia-se que não eram incomuns incidentes em que grupos de soldados tomavam na marra o objeto tão carregado de mana que era o boné vermelho. O que levava a represálias, obviamente, em um ciclo que parecia ser tolerado pelos superiores como forma de manter a tropa acesa.
Seja lá como for, nossa visita à terra mítica dos bonés vermelhos foi cercada de grande expectativa e algum temor. Entramos no caminhão e lá fomos nós, com a consciência não somente de que éramos “pés pretos”, mas éramos também alunos de um curso preparatório para oficiais da reserva, ou seja, uma espécie de “meia-boca” do oficialato. Ainda por cima éramos uma turma de Intendência, o setor menos militar do Exército. Não nos pareciam elementos que nos garantiriam uma boa recepção junto aos pequedês.
De início, as amabilidades, a parte oficial da visita. Aprendemos o básico sobre a preparação dos paraquedas e depois tivemos até um momento de relativa “brincadeira” quando todos puderam participar de um exercício de salto no solo, início do curso de paraquedista. Estavamos alegres feito crianças e bastante relaxados, o que foi um erro.
Quando estavamos nos movimentando na direção da cantina dos oficiais, atravessando um pequeno gramado, fomos parados por um tenente enorme e com cara de poucos amigos. Ele perguntou com o tom de voz bem acima do normal:
– Seus pés pretos imundos, como vocês ousam pisar no gramado sagrado da Pequedê?
Claro que não havia nenhuma placa interditando pisar ali, àquela altura do campeonato os nossos olhos e ouvidos estavam acostumados em reparar nas proibições, que eram muitas. Mas sabíamos também que não adiantava ponderar, seria pior.
– Vocês erraram, vocês vão pagar…
E aí começou uma verdadeira sessão de tortura com flexões e outros exercícios sendo exigidos num ritmo alucinante.
A nossa salvação foi um capitão com pinta de japonês que era da Intendência – bendita solidariedade institucional – e nos resgatou, interrompendo aquela punição sem sentido. Se não fosse ele, acho que eu estaria até lá no gramado sagrado a pagar flexões..
Ufa, chegava a hora boa: almoço. Era na cantina dos oficiais e da mesma forma que os pequedês têm um adicional no salário nós imaginávamos que a verba de alimentação deveria ser também reforçada. Já raciocinávamos como intendentes. Estavamos certos: foi uma das comidas mais deliciosas que comemos em um ano de serviço militar.
A “sobremesa” é que não era muito saborosa. Ao entrar, nossa turma depositava os quepes numa mesa existente para este fim. Ao sair, era necessário ir até a mesa e buscar sua “cobertura”. Nessa hora os oficiais da pequedê, repeto, os oficiais, aproveitavam deste breve momento em que um de nós tinha que se curvar e parar para pegar o boné. Tão simplesmente jogavam comida no aluno “pé preto” que tinha ousado comer o que eles deviam considerar a refeição sagrada da pequedê.
Chegou a minha vez de sair da cantina. Levantei-me. Percebi que os pés vermelhos armavam o bote. Fui na direção da mesa, a comida já devia estar nas mãos deles, pronta para ser arremessada. Fingi que iria parar, tirei meu bonezinho do bolso, coloquei-o rapidamente na cabeça e fui embora deixando-os literalmente com a comida na mão.
Esta aí, conforme prometido: de como um pé preto imundo deu a volta nos pequedês.