DE QUE É FEITO O MITO
Ele era um mito. Também, pudera. Àquela altura, já tinha publicado mais de vinte e cinco livros, alguns traduzidos em vários países. Era um dos poucos historiadores brasileiros reconhecidos mundialmente. Começara a carreira pesquisando História do Brasil em um enfoque econômico, dera uma enorme contribuição no campo da teoria, metodologia e pesquisa em História para depois cair nos braços do seu amor de infância: o Egito Antigo. A impressão que tínhamos era de que ele sabia de tudo. E acho que não estávamos enganados.
Como depois fui seu orientando de mestrado, pude perceber que, além de muito trabalho ele era realmente dono de uma mente excepcional. Como ambos éramos fãs de ficção científica, certa vez, durante um almoço, me animei a contar de um livro que eu estava lendo, o engraçadíssimo Congresso Futurológico, de Stanislaw Lem. Começa com uma reunião internacional de futurólogos, que se acham capazes de prever o futuro do mundo mas sofrem um ataque terrorista que nenhum deles conseguiu vaticinar. Foi aí que ele olhou para mim e disse que havia lido o livro em 1974, muitos anos antes. E passou a comentar o livro, de uma maneira bem mais minuciosa do que eu poderia fazer. Com a diferença de que eu tinha lido a obra duas semanas antes.
Claro, vocês já advinharam que o nome dele é Ciro Cardoso. A história que quero contar se passa no ano de 1984, quando eu estava no último período de História. Por uma dessas felicidades do acaso, pude finalmente ter aula com o grande mestre. Era um curso sobre o trabalho compulsório na Antiguidade, englobando Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma. A dinâmica da sala de aula era fantástica, toda baseada na análise de fontes primárias, uma das muitas coisas que aprendi com ele e levei para o meu trabalho como professor. Além disso, ele nos ensinou literalmente a estudar, através do uso de fichas bibliográficas de conteúdo. Nunca mais li um livro especializado da mesma maneira.
Além de um grupo entusiasmado de estudantes matriculados naquela disciplina, havia também alguns ouvintes. As pessoas vinham de longe para ter aula com ele. É inacreditável, mas naquela época Ciro tinha apenas 41 anos. Um dos ouvintes era um senhor bem mais velho do que ele, de cabeça toda branca. Normalmente não dizia nada nas aulas. Até o dia em que resolveu abrir a boca e perguntar:
– Cartago fazia parte do Império Romano?
A turma ficou paralisada. Todos nós sabíamos o quanto aquela pergunta era absurda, afinal Cartago foi a principal pedra no sapato de Roma por mais de quatro séculos. A única coisa que os romanos queriam era destruir Cartago de uma vez por todas, coisa que eles finalmente conseguem, tocando fogo na cidade e salgando o solo para que nada mais crescesse ali.
Fazer uma pergunta dessas ao mestre dos mestres era um absurdo, uma heresia, pensamos todos nós, embora sem dizer nada. Suspense. Como ele iria responder?
Ciro não se perturbou. Dirigindo-se com muita deferência ao aluno-ouvinte, devidamente tratado de senhor, recapitulou toda a questão de Roma e Cartago, do início ao fim, de forma paciente e tranquila, sem pressa, como se fosse uma pergunta excelente.
Naquele momento, a lição que deu foi a mais importante de todas: respeito acima de tudo. Descobrimos que além de trabalho, inteligência e erudição, um mito também é feito de humildade e de gentileza.