/DEBRET CAMINHANDO PELAS RUAS DO RIO

DEBRET CAMINHANDO PELAS RUAS DO RIO

DEBRET CAMINHANDO PELAS RUAS DO RIO
Há exatos 206 anos, desembarcava na capital do Império um francês desiludido, um pintor que tivera que abandonar às pressas Paris quando da perseguição política que se seguiu à derrota final de Napoleão. Não deixava para trás muita coisa: sua mulher o abandonara e seu único filho morrera no gelado front russo. Já não era nenhum garoto: ao pisar pela primeira vez em solo carioca, Jean-Baptiste Debret tinha 48 anos.
Aqui, reinventou sua vida. Garantiu o sustento e a respeitabilidade se tornando o pintor da família imperial e o fundador da Academia Imperial de Balas Artes, a primeira deste gênero no Brasil. Ao mesmo tempo, levava uma espécie de vida dupla, sentando no meio da rua, debaixo do sol tropical, um jornal dobrado servindo de chapéu (ver mosaico de imagens abaixo) para registrar a vida cotidiana da população escravizada. Retratou de tudo um pouco, trabalho sobretudo, mas também lazer, religião e até mesmo a sociabilidade dos negros e negras submetidos ao cativeiro.
Tudo isso seria material para um livro chave para o entendimento do Brasil Império, seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Ali, claramente, retratou a população escravizada da maneira mais digna possível, com corpos e posturas atléticos, lembrando modelos gregos. Há quem diga que isso visava o “embelezamento” de uma obra que Debret esperava que fosse um sucesso de vendas na Europa (não foi).
Para mim se tratava de outra coisa: Debret quis valorizar aqueles que estavam construindo o novo país, apesar dos maus tratos, da violência, da tortura. Tanto que Debret não deixa de retratar isso no livro, de forma bastante gráfica, mostrando a chaga aberta e o sangue correndo depois da punição no Pelourinho, por exemplo. Filho da Revolução Francesa, Debret era frontalmente contrário à escravidão.
Debret também tinha um caderno de esboços, que só foi encontrado em Paris na segunda metade do século XX. Ali encontramos as cenas nuas e cruas da miséria, do abandono e do desespero dos negros escravizados (ver mosaico abaixo). Ele não as transformou em gravuras do seu livro. Ele queria retratar a vitória dessa população e o seu valor. No esboço ele retrata um vendedor de flores esmulambado, com um machucado no perna esquerda, que no livro se transforma em um jovem de postura elegante e muito bem vestido, para dar um exemplo (ver mosaico).
Andando pelas ruas do Rio de hoje, me lembro das figuras presentes no seu caderno de esboços. Mais de dois séculos depois, a miséria e o desespero dela decorrente ainda têm cor. Olhem vocês mesmos para as figuras de Debret e me digam se já não viram o mesmo espetáculo pelas calçadas.
Se Jean-Baptiste Debret passeasse hoje pelas ruas do Rio de Janeiro, talvez pensasse:
— Afora os grilhões, meu livro continua atual.