DESPEDIDA GLORIOSA
Éramos todos alucinados por futebol. Eu e todos os outros meninos que moravam no prédio. Só havia um problema: não tínhamos quadra nem playground. Apelamos para o futebol de botão. Tínhamos extensos campeonatos com tabelas muito bem feitas, regras e até revistas que desenhávamos para contar a história dos jogos. Nos nossos gramados imaginários desfilaram Doval, Gérson, Pelé, Tostão, Jairzinho, Bobby Charlton e muitos outros, disputando partidas épicas, fazendo gols inesquecíveis.
Meu filho Heitor, quando criança, era ainda mais apaixonado por futebol. O que esperar de quem nasceu em plena Copa de 94? Sua escola tinha quadra, ele fazia escolinha de futebol e me carregava para jogar com ele todos os fins de semana. E já existiam os videogames de futebol. Mesmo assim, eu estava decidido a mostrar como era a diversão do pai quando criança. De vez em quando eu ensinava um pouquinho de futebol de botão a ele e jogávamos umas partidas.
Havia que buscar uma forma dele praticar mais. Foi aí que nos tornamos atletas de futebol de mesa do América, treinando uma vez por semana no CT de Campos Sales, na Tijuca, perto da casa dele. Aqui o papo era outro. A mesa tinha dois metros, ao invés do dadinho a bola era redonda e os botões tinham furos no meio. Além disso, cada botão só podia dar três toques seguidos na bola e doze no total até o chute.
Eu sempre fui um craque no futebol de botão, ironicamente o único esporte em que eu joguei alguma coisa. Passei toda a minha infância e parte da adolescência jogando, mas com botões de galalite e dadinho, e uma regra totalmente diferente. De qualquer forma, lá estava eu tentando incentivar o meu filho a praticar o futebol de mesa. Ele tinha dez anos, estava numa idade boa para começar. No meu caso a adaptação prometia ser bem mais difícil.
E foi. Logo no primeiro jogo do treino eu enfrentei um dos melhores atletas do América, um sujeito de bigodão, sério toda vida, que vou chamar de Bigode. E ele nem quis saber se eu era principiante ou não. Usou a partida como treino de ataque e me submeteu a um impiedoso 14 a zero. Heitor soube do resultado e para dar o exemplo eu disse a ele o seguinte:
– Só largo o futebol de mesa no dia em que eu vencer o Bigode.
O que parecia, àquela altura do campeonato, uma missão impossível.
Continuei treinando, perdendo de pouco aqui, empatando ali e às vezes até beliscando uma vitória. Participei da 2ª. divisão e consegui subir para a 1ª. divisão do Campeonato Carioca Individual. Comecei a participar das etapas e vi meu rendimento melhorar. Aos poucos, já estava na metade de cima da tabela e já conseguia fazer jogos disputados com a maioria dos jogadores.
Eis que vem o Campeonato Brasileiro. Ousado, me inscrevi. Por incrível que pareça, estava indo bem na primeira etapa. Tinha até chances de classificação para a fase seguinte. Faltava um jogo, o decisivo. Claro que você já adivinhou quem era o meu adversário: Bigode, o próprio. Além da habilidade, o que o caracterizava era o controle das emoções, o homem era um iceberg.
Eu saí na frente, mas ele não se abalou e logo conseguiu o empate, Bigode era uma máquina. Fomos assim, eu marcando e ele empatando até o quatro a quatro. Deviam faltar uns 30 segundos. Sobrou uma bola difícil, perto do botão dele, meu botão tinha que fazer uma trajetória precisa para marcar o gol. Resolvi arriscar. Ele até levantou as sobrancelhas quando pedi que preparasse o goleiro. Peguei na bola de efeito, como se fosse um chute de trivela e ela descreveu uma mágica trajetória até entrar no ângulo esquerdo junto à trave. Alvito cinco, Bigode quatro, placar final. Eu estava classificado.
No dia seguinte, em casa, Heitor me avisa preocupado que daqui a algumas horas começava a segunda fase. Disse a ele que não era preciso. Lembrei a promessa feita quase um ano antes:
– Só largo o futebol de mesa no dia em que eu vencer o Bigode.
Esqueça o Pelé, aquilo é que foi uma despedida gloriosa.