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Doutor em balas perdidas

DOUTOR EM BALAS PERDIDAS

Estava casado. Minha mulher, querendo emagrecer, entrou nos Vigilantes do Peso. Eu não me associei, mas por solidariedade compartilhei das espartanas refeições previstas no programa. De início, senti até tonteira de tanta fome, mas segui firme. Resultado: ela emagreceu cinco quilos e eu emagreci uns doze. Certo dia, indo trabalhar, no trajeto entre a barca e a universidade, minha calça caiu e tive que entrar numa loja para comprar um cinto. Depois descobrimos o porquê do meu emagrecimento excessivo: eu deveria ter comido 30% a mais do que ela comia. Se ela passou uma fome sistemática, eu fui submetido a uma tentativa de auto-extermínio, mais desaparecimento do que emagrecimento.

Seja lá como for, de uma hora para outra eu fiquei bem magro. Como à época eu já estava realizando uma pesquisa na favela de Acari, soube que começaram a pipocar versões explicativas para aquele súbito emagrecimento. Uns diziam que eu havia pego AIDS. Outros que estava frequentando bailes funk e cheirando cocaína. Não sei se as pessoas acreditavam mesmo nisso. O que sei é que o estigma que pesa sobre a favela pesa também sobre o pesquisador.

A relação da universidade brasileira com a favela sempre foi vergonhosa. No final da década de 60 os únicos estudos acerca das nossas favelas eram obra de estrangeiros: Anthony e Elizabeth Leeds, Janice Perlman e Luciano Parisse. Nesta mesma década, os reitores de universidades federais chegaram a se reunir e declarar que as favelas eram um câncer que deveria ser extirpado.

O Departamento de História em que eu atuava, apesar de todo o seu prestígio, cem anos depois do surgimento da primeira favela ainda não havia visto nenhuma dissertação ou tese tratar do tema. Dentre os professores, nenhum havia defendido o mestrado ou o doutorado tendo como assunto a favela. Eu entendi bem o porquê disso numa tarde em que estive na universidade, já estando afastado para o doutorado. Eu estava chocado e abalado com o que vira no dia anterior. Cinco jovens haviam sido executados junto a um muro com tiros na cabeça quando estavam voltando de um baile funk.

Por coincidência, encontrei duas colegas que eu prezo muito. Quando contei o que havia ocorrido, fez-se um breve silêncio, como se elas não soubessem o que dizer, como se não esperassem que se falasse daquele assunto. Uma delas quebrou o gelo:

– Essas coisas ocorrem com frequência nesses lugares…

A outra aproveitou e logo mudou de assunto:

– Querida, quando é mesmo a defesa da sua aluna?

Dessa vez, quem havia tomado um tiro na cabeça era eu.

O departamento tinha uma tradição não-escrita para receber os professores da casa que se doutoravam. Fazia-se o anúncio do tema, de quando ocorrera a defesa e logo depois havia uma salva de palmas. Algo muito simples, mas merecido e importante para quem havia passado quatro anos pesquisando e escrevendo.

No dia em que fui à minha primeira reunião de departamento depois de defender a tese, curiosamente meu nome e meu tema não foram anunciados. Não tive direito a uma salva de palmas. A título de saudação, ouvi apenas a reveladora gracinha proferida por um colega:

– Agora temos nosso Doutor em balas perdidas…