FAZENDO TUDO PARA MANTER A VIRGINDADE
Opa, não é isso que vocês estão pensando, seus danadinhos. Virgindade era como eu me referia ao fato de nunca chegar atrasado às minhas aulas na universidade do outro lado da Baía. Digam o que quiserem, mas eu acho uma postura profissional absolutamente necessária que o professor seja pontual. Como já expliquei a muitos alunos e alunas, não existe chegar na hora. Chegar na hora é acidente, há que chegar antes. O trabalho em sala de aula é coletivo, mas é orientado, dinamizado e gerido pelo professor ou professora. Dez minutos de atraso todas as aulas em um curso de 30 aulas representam cinco horas a menos de trabalho. Vinte minutos, dez horas e por aí vai…
Durante os anos em que trabalhei na universidade, enfrentei uma enorme resistência por parte dos e das estudantes, que achavam um absurdo o meu rigor com a presença e a pontualidade. Sempre disse a eles e elas que a sua presença em sala era indispensável, que contava com ela ou com ele para participar das atividades. Sabem o que é uma aula em que durante uma hora há gente entrando em sala, procurando onde sentar, se ajeitando… A aula exige concentração, é que nem um navio singrando os mares, todo mundo tem que estar a bordo desde o começo. Fui visto como louco, sargentão, disciplinador, rude etc. Lamento que entre os alunos da área de História e Ciências Sociais haja tanta condescendência com a falta de dedicação ao trabalho.
Acho que isso deriva do mito da genialidade, do talento. Pessoas muito inteligentes não precisariam se dedicar tanto, trabalhar tanto. Confundem a falta de profissionalismo com uma pseudo-liberdade: chegar à aula à hora em que se quer e pronto. Sempre achei que estes alunos e alunas estavam desperdiçando o seu potencial, que exige muita disciplina e muito trabalho para ser plenamente desenvolvido. Muitos professores e professoras participam do jogo, porque também não querem ser cobrados, pela pontualidade ou por outras coisas tão importantes quanto. Todos conhecem isso, é chamado de “Pacto da Mediocridade”.
Na verdade, antes de tudo o mais, chegar na hora é uma questão de respeito aos seus alunos e alunas. Por isso eu estava tão preocupado naquele dia. Parecia um dia normal, em que tomei a barca na Praça XV cerca de uma hora e meia antes do horário da minha aula no turno da noite.
Corria tudo bem até estarmos quase em Niterói. Foi aí que o capitão anunciou pelos alto-falantes que a barca estava à deriva, sem rumo, ou melhor, rumando na direção de um quebra-mar cheio de pedras à esquerda de quem chega em Niterói. A embarcação não estava a toda velocidade, mas tampouco estava indo devagar. Seria um belo tranco, mas estaria longe de um filme catástrofe. Até que um sujeito mais nervoso se levanta na entrada da barca e começa a correr dizendo:
– Vai explodir! Vamos para trás, vamos para trás!
Eu continuei sentadinho na minha poltrona, segurando firmemente a poltrona da frente. Mas muita gente acreditou naquele arauto do fim do mundo, inclusive senhoras e crianças, e passaram a correr pelo corredor na direção do fundo da barca. Logo veio o choque, que não foi tão significativo para quem estava sentado. Mas que desequilibrou a corrente humana que estava de pé correndo, o que levou a muitos tombos e a ferimentos leves, afora o susto.
Depois de perceber que o Apocalipse fora adiado, passei a me preocupar com o horário da aula, pois queria a todo o custo manter a minha “virgindade”. Se a barca tivesse explodido eu teria uma desculpa válida, mas não era esse o caso. Outra barca veio nos resgatar. Eu cheguei em Niterói, na Praça Araribóia, quando faltavam ainda uns 15 minutos para a aula começar. Daria tempo de sobra para chegar lá de táxi, em cinco minutos estaria no campus. Mas quem disse que eu lembrei que táxis existiam? Estava tão apavorado com a perspectiva de chegar atrasado que simplesmente saí correndo até a universidade com a mochila carregada nas costas. Ainda bem que estava em forma. Cheguei um pouco esbaforido, mas faltavam dois minutos para a aula começar…
No total, minha virgindade durou 32 anos, os 32 anos em que lecionei em Niterói. Deixe que outros e outras se orgulhem das teses, dos livros, dos artigos, dos títulos. O meu único motivo de orgulho, simbolizado pela virgindade, foi o de ter respeitado a minha profissão, deixando de lado o mito do intelectual gênio e abraçando a minha condição de um trabalhador honesto.