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Gentileza demais

GENTILEZA DEMAIS…

Das entrevistas que não fiz, essa foi a mais espetacular. Eu dava aula em um curso de Segurança Pública na UFF em que as turmas eram quase na totalidade compostas por oficiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Minha disciplina tinha um título direto e contundente: A Polícia e os Pobres. Outro dia falo sobre isso, mas por ora cabe dizer que depois de uma compreensível resistência inicial, meus alunos e alunas foram muito receptivos e me trataram com muito respeito e consideração. Espero que a recíproca tenha sido verdadeira.

Mas o que eu venho contar hoje é um episódio absolutamente inesperado. Depois de dois anos lecionando para turmas de oficiais, senti-me mais à vontade e decidi realizar um projeto de entrevistas. Alguns deles se voluntariaram e deram ótimos depoimentos que transformei em um artigo intitulado “Memórias de ‘bicho’”. Normalmente eu não pedia entrevista a ninguém, mas em um caso resolvi abrir uma exceção.

Naquele ano ele era o oficial “mais antigo”, sendo sempre tratado pelos outros policiais com a reverência que a hierarquia exige. Era muito simpático comigo, dizendo que gostava sobretudo das minhas histórias acerca da favela. Explicou que costumava subir determinada favela para namorar aquela que hoje é sua mulher. Lembrou as tias que o alertavam para se comportar direitinho, dizendo que a moça era séria e de boa família, o que fazia com que ele desse uma paradinha e pagasse umas cervejas para elas antes de chegar à casa da namorada.

Nada mais sabia sobre ele, mas por ser um oficial mais velho, muito experiente, com aquele contato bem diferente com a favela, achei que seria interessante entrevistá-lo. Sendo assim, entro em contato por email, ainda sem falar em entrevista, somente em uma conversa. Ele responde com entusiasmo e me convida para jantar na casa dele. Quando chego, fico surpreso: a casa, confortável mas sem nada de luxuoso, ficava em uma ladeira bem próxima da favela onde antes morava sua mulher.

E ela lá estava, preparando para nós um delicioso jantar. A conversa estava ótima, o coronel era muito bem humorado, trocávamos histórias sobre a favela, tudo corria bem. Mas eu tinha que tocar no assunto da polícia militar, era isso que havia me levado ali. Na verdade já estava até me sentindo mal, um pesquisador sendo acolhido com uma hospitalidade magnânima digna de um bom amigo.

Mas era o meu trabalho. De qualquer forma em algum momento eu iria explicitar o meu interesse em entrevistá-lo, assim eu pensava. Sabendo que de uma maneira ou de outra o tema da violência apareceria, fiz uma pergunta que me pareceu inocente:

– O senhor é bem calmo, não é, coronel?

A resposta, embora dada em tom tranquilo, foi um soco de Mohamed Ali:

– Calmo, eu? Tenho mais de 150 processos de homicídio nas costas.

Gelei. De todas as partes do meu corpo que ficaram paralisadas, a língua, sobretudo, parecia morta.

Fui “salvo” pelo comentário da mulher, que reclamou:

– Pois é, eles te usaram, você serviu até mudar a política, agora…

Lembrando que tínhamos tido uma mudança na política de segurança pública, ao menos uma tentativa de mudança, na direção de diminuir a estratégia de confronto que só redundava em mortes e mais mortes.

Não me lembro qual foi a sobremesa, mas jamais esquecerei que depois do jantar o coronel começou a me mostrar um álbum de retratos. Aí é que veio a surpresa maior. Ele me aponta uma foto em que estava todo de branco, com o uniforme de gala da PM. Exceto por um detalhe, estava descalço. E logo explica:

– Foi o dia em que me tornei Pai-de-santo…

A essa altura, a ideia da entrevista, que agora eu sabia ser muito mais interessante do que eu pensava, já estava nocauteada. Eu tinha mulher, um filho e amor à vida. Dei mais um tempinho, aleguei que a cidade estava violenta e disse que tomaria um táxi.

– Nada disso, professor, faço questão de levar o senhor em casa.

De nada adiantou eu dizer que não era necessário. Entramos no carro e antes de virar a chave ele coloca uma pistola prateada do tamanho do meu medo no porta-luvas. E assim foi. Ele me levou gentilmente até a porta do meu prédio. Gentilmente até demais…