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Histórias do Alvito – A CANEQUINHA AZUL

Histórias do Alvito
A CANEQUINHA AZUL
Rumo ao coração do agro sem coração, o Centro-Oeste. Sempre vale a pena: um horizonte alucinógeno de 360 graus rendado de nuvens. Gaviões e tucanos planando soberanos. Aqueles assustadores mares sem fim das plantações povoados de bichões de metal com suas patas e garras afiadas. Árvores, matas, rios, córregos, nada disso faz parte da paisagem. Estados que antes tinham Mato no nome, em breve irão chamar-se apenas Grosso e Grosso do Sul.
Antes, a parada em Araraquara. Londres, Paris e Nova York são para os fracos, os sem-imaginação, incapazes de perceber as formas mais originais da beleza. O charme de uma cidade com perfume de laranja. A rua Cinco e sua mágica: oitis com sombras tão ferozes que nem a luz do sol de verão consegue vencer. A calma pracinha da escola e o coreto estilo Belle Époque. Tão bem preservado que, ali, um ouvido apurado e nostálgico ainda pode ouvir uma bandinha tocando. A pequena e simpática livraria Machado de Assis, organizada e arrumada por mãos de mulher (estou remetendo à cena entre Riobaldo e Nhorinhá, não me perturbem com patrulhices politicamente corretas). E, por fim, a briosa Associação Ferroviária de Esportes, também conhecida como Ferroviária de Araraquara, um time com muito mais tradição que o Paris Saint-Germain e com um estádio de nome muito mais bonito, ou vai dizer que o brega Parque dos Príncipes se compara à Fonte Luminosa? Sem falar que a Ferroviária foi fundada por honestos trabalhadores e não é financiada pelo dinheiro sujo dos sheiks do Catar, que vivem tomando cartão vermelho da Anistia Internacional. E a linda camisa cor de vinho da Ferroviária é muito mais elegante.
Pois bem, foi lá em Araraquara que se deu o fato. Antes, preciso explicar que sou louco por café. Falo de qualidade, não de quantidade. Se ultrapassar a minha cota diária fico na cama com a cabeça girando mais do que turbina de hidroelétrica. Não entendo de café, não vou dizer que o grão tal tem um toque melancólico de pimenta branca ou uma reminiscência de amoras alsacianas. Mas não suporto beber suco de carvão-pilão, café de garrafa térmica para mim é bebida do anti-cristo e café com açúcar é uma tortura que ninguém merece.
Sendo assim, nas minhas viagens, carrego minha própria cafeteira e levo meu estoque de café bom, bom, caso tenha que visitar terras bárbaras. Coloquei todo o meu kit café no burrinho, mas me esqueci de uma xícara, de uma caneca. Café no copo? De plástico ainda por cima? Crime inafiançável. Com o perdão do óbvio, o café é um líquido e o líquido precisa ser colocado em algo que o contenha. Assim o líquido toma forma, em mais de um sentido. É um caso clássico em que forma e conteúdo andam de mãos dadas.
Por isso, me vi a perambular pelas acolhedoras ruas do centro de Araraquara a procurar uma forma para dar a meu tão amado conteúdo fumegante. Entrei em um brechó de luxo, onde se vendiam camas, livros, roupas, copos… E a minha caneca azul. Fosca, discreta, sem a extravagância do esmalte. De um azul sólido, confiável. Cerâmica deliciosa ao toque, suavemente áspera. Com uma asa que tinha quebrado em quatro partes e fora colada de forma um tanto desajeitada, quase criativa.
Enfim, uma caneca com história. Uma caneca única, pois foram os acidentes e a forma da sua recuperação que deram a ela uma trajetória própria, uma marca original que convida à indagação: como será que ela se partiu?
Ela e o café foram feitos uma para o outro. E a canequinha azul, para mim, passou a simbolizar a busca da harmonia e da beleza, da necessidade de deixar a imaginação voar, mesmo que seja de asa quebrada.