/Histórias do Alvito – A HISTÓRIA DO CANIVETE SUÍÇO

Histórias do Alvito – A HISTÓRIA DO CANIVETE SUÍÇO

Histórias do Alvito
A HISTÓRIA DO CANIVETE SUÍÇO
Para K.
Os olhos do menino quase saltavam. Diante dele, com calma baiana, o pai explicava com voz grave cada uma das utilidades daquele objeto maravilhoso, com o qual, segundo ele, poder-se-ia sobreviver na selva. O canivete oficial do exército suíço, em um vermelho sangrento, com o escudo estilizado da bandeira. O menino podia olhar, mas o jeito do pai segurar lhe indicava a proibição do toque.
De vez em quando, em um piquenique, de repente o pai sacava do canivete, abria uma lâmina de aço brilhante e com ela descascava uma laranja ou cortava um pedaço de queijo, mostrando ao menino que aquilo funcionava de verdade. E o desejo engasgado de empunhar o objeto só aumentava.
Não vão pensar errado. O pai era generoso e bom. Mas ficara órfão de pai aos dez anos e fora enviado a um colégio interno em Petrópolis. Ali tinha que comer rápido porque atrás já havia outro menino à espera. Não tinha direito a repetir e a vida toda justificava sua glutoneria dizendo:
— É fome velha!
Por isso, quando percorria as ruas da cidade como representante de uma margarina, fazendo seu Ensino Médio à noite, economizou um dinheirinho para comprar o canivete que simbolizava a entrada na maturidade, o pertencimento ao mundo masculino e, sobretudo, o direito à individualidade. Ele, que na infância não tivera direito a objetos privados, agora era cioso e ciumento em relação ao que conseguira com tanto esforço.
Herdei o canivete quando papai morreu. Foi quando descobri que ele só tinha graça naquelas mãos morenas e grossas. Eu o guardei como lembrança, expliquei a história a meu filho e disse que, quando eu morresse, dele seria, desde que ele contasse ao filho ou filha dele quem tinha sido o vovô, meu pai Dario.
Hoje quebrei essa corrente, inverti o processo. Convidei meu filho para almoçar. Ele tem 28 anos, é médico, trabalha salvando vidas em UTI’s, fala com entusiasmo de um trabalho pesado, exigente e até insalubre devido aos longos plantões. Dele eu muito me orgulho. Ele sempre pôde pegar no canivete e experimentá-lo. Mas eu achei que era pouco.
Dei a ele o canivete, pois agora ele é um homem, é independente, tem um trabalho com significado e propósito. Desta vez foram os olhos dele que saltaram. O canivete estará em boas mãos. Não queria que ele herdasse algo depois da minha morte.
É menos uma conta a acertar para poder morrer.
O que significa dizer: para poder viver plenamente.