/Histórias do Alvito – ADEUS MARACANÃ, AQUI ME TENS DE REGRESSO

Histórias do Alvito – ADEUS MARACANÃ, AQUI ME TENS DE REGRESSO

Histórias do Alvito
ADEUS, MARACANÃ, AQUI ME TENS DE REGRESSO
O ADEUS
Você vive numa casa por mais de quarenta anos. Ela vê o menino crescer, o adolescente tomar corpo, o homem se formar. Ali você leva seus amigos, as primeiras namoradas e, depois, seu filho. De repente, sua casa é tomada e se anuncia uma reforma, uma modernização, usando o seu dinheiro. Depois que finalmente te deixam retornar, você não mais reconhece a casa, entra nela sem saber mais onde está.
Este foi o meu sentimento em relação ao Maracanã após sua transformação em uma arena de luxo, em um studio de futebol, feito para a televisão mas não para os torcedores. A prova estava clara no primeiro jogo no estádio depois da reforma (um amistoso Brasil 2×2 Inglaterra) e hoje foi confirmada quando do jogo entre da partida entre Flamengo e Palmeiras.
Imagine uma falta bem batida pelo Zico, aquele drible cheio de ginga de Romário, a cabeçada salvadora do Ronaldo Angelim. Em todos estes lances, o locutor poderia lançar mão da velha imagem: a pelota, a redonda, morta no fundo da rede, símbolo maior de que a defesa foi vencida e não há nada mais a fazer.
Em qualquer estádio do mundo se espera que a torcida consiga ver a bola atravessar a linha e repousar no âmago mais recôndito do filó, pedacinho de paraíso na terra. No Maracanã, em 2013 ou 2022, não é assim. os torcedores que ficam atrás do gol, mesmo os do nível superior, mais alto, não conseguem ver o destino final da bola, pois sua visão é tapada pela publicidade.
Os milhões que assistem pela tevê não percebem, dispõem de 27 ângulos diferentes e em todos eles a visão é perfeita. Mas não os palhaços que pagam plano de sócio-torcedor, ficam na fila para trocar o ingresso que compraram a peso de ouro, pegam metrô, são revistados e finalmente entram no estádio. Nós estamos ali só para enfeitar o espetáculo, não para ver a bola entrar completamente na rede.
Outro detalhe revelador do “espírito da coisa” é o telão. Não para de anunciar coisas, como se a gente estivesse em casa, assistindo televisão. Inclusive no intervalo da partida, momento, como qualquer torcedor ou torcedora sabe, de reflexão e angústia quanto aos destinos do time na etapa derradeira. No caso do Fla x Palmeiras, algum gênio de marketing fez a mágica de associar o sagrado título mundial do Flamengo em 81 com a oferta de um prosaico hamburguer. Nos corredores, vendiam-se por quinze pratas um copo-souvenir de plástico, cuja fabricação deve ter custado no máximo um mísero real. Mais e mais esse Maraca fake se parece com um shopping. E dá-lhe de locutor aos berros anunciando mais planos e mercadorias.
Quando era criança, ficava na ponta dos pés para poder ver o time entrando em campo, saindo de dentro do túnel como super-heróis vindos do umbigo da Terra em meio aos rojões, ao papel picado e um mar de bandeiras. Agora o time entra antes para fazer aquecimento sem nenhum charme, volta para o vestiário e ao retornar se perfila para ouvir o hino nacional. Nada mais brochante, nada mais brega, estádio não é quartel, só faltam hastear a bandeira nacional, isso aqui é Flamengo seus idiotas.
O aparato de “segurança” é medonho, por todo o lado homens da Sunset com seus coletes amarelos. A maioria não está fazendo absolutamente nada. Se eu fosse jornalista ou ministro do Tribunal de Contas eu daria uma investigada nisso. Sol nascendo tudo bem, mas sol se pondo é a escuridão onde grassam as mamatas nessa terra.
Termina aqui o primeiro tempo, o Adeus, Maracanã. Vamos agora à segunda etapa.
O REGRESSO
Havia 69.997 pessoas no Maraca para o jogo. Os três que faltaram para completarmos 70 mil estavam num Fiat Uno 94 que não deu no couro na subida da Grajaú-Jacarepaguá. Mas juro que eles ficaram escutando a partida no rádio enquanto o reboque não chegava.
Eletrizado com a massa cantando e batendo palmas afinada, esqueci de tudo. Da rede sonegada, do telão, do locutor, do hamburguer e até do copo de plástico. Voltei a ter 17 anos indo sozinho ao Maraca, saindo do ônibus apertado para entrar numa arquibancada ainda mais espremida para ver o meu Mengão. Foi como se eu me conectasse novamente a uma energia incomensurável.
E aí eu já sabia o que fazer. Fiz logo dois amigos, um à minha esquerda, outro à direita. Sem conotações ideológicas, porque neste caso o sujeito da direita era mais animado, às vezes saía dançando como se estivesse num baile de carnaval. Entre um xingamento e uma canção, trocávamos impressões táticas, estratégicas, filosóficas, o escambau. Agora já tinha quem abraçar na hora do gol.
Mas o gol não saiu. O time do Porco (é assim que eles gostam de ser chamados, estou sendo respeitoso) é muito perigoso. Eles não jogam futebol, jogam sinuca. Se defendem com uma muralha de 77 jogadores. Quando pegam a bola dão uma tacada para a direita, outra para a esquerda e encaçapam o golzinho que é suficiente para a vitória.
O Flamengo quase caiu na armadilha, mas conseguiu impedir que os leitõezinhos mais lépidos fizessem a bola morrer vocês já sabem onde. A equipe jogou do jeito que nossa torcida gosta: sangue, suor e lágrimas. E um ou dois gols, de preferência. Que não vieram.
Não faz mal. Dizem que os amputados continuam sentindo o membro inexistente. A torcida do Flamengo é assim, deceparam-lhe o estádio, destruíram a sua casa, mas não conseguiram calar a sua alma. Pois quando eu fechei os olhos e me deixei tomar pelo divino coro de quase 70 mil pessoas (os caras deveriam ter trocado o filtro do óleo), até pensei que estava no Maracanã.
Maraca, meu lindo, ai que saudade de você.