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Histórias do Alvito – ALVITINHO KUNG-FU

Histórias do Alvito
ALVITINHO KUNG-FU
Essa foi escavada nas cavernas profundas da memória.
Passei minha infância, como quase todos os meninos, querendo ser jogador de futebol. Quando o princípio de realidade triunfou, percebi que não tinha habilidade, nem velocidade, nem força ou qualquer outro talento a sustentar meu desejo. Foi aí que, lá pelos doze anos passei a sonhar em ser gafanhoto…
Explico. Era um menino baixinho e mirrado que vivia sendo agredido, física e verbalmente pelos machinhos idiotas, que (como sempre) eram muitos. Por isso, aquela série de televisão foi tão fascinante. O nome: Kung Fu, até então uma arte marcial desconhecida no Brasil.
Todos os episódios tinham a mesma estrutura: David Carradine, pequeno e mirrado feito eu, era um monge cujo mestre o chamava de … gafanhoto, passando-lhe lições de sabedoria e pacifismo em uma sala com clima místico à luz de velas. Ao mesmo tempo, o novato era treinado para se defender.
E ele se defendia muito bem na outra parte do episódio, passado, ora vejam só, em meio à selvageria do Velho Oeste, onde o gafanhoto era achincalhado, humilhado, ameaçado e agredido, até que o ex-monge, sem demonstrar nenhuma raiva, soltava pernas e braços feito um furacão silencioso. Eu sentia uma vingança catártica, mas o sábio e compassivo gafanhoto ficava triste por ter sido obrigado a tanto.
O mais próximo do kung-fu que havia no meu bairro eram aulas de judô com um professor coreano. Meus pais, pacientes, me matricularam. Descobri que tinha físico de gafanhoto e a mobilidade de um besouro acima do peso.
Para minha surpresa, o mestre convocou os pais para uma apresentação dos novos alunos, incluindo este judoca de araque. O mestre, diante de maravilhados progenitores, “lutava” com cada um de seus pupilos. Ele mesmo se dava o golpe, mas criava a ilusão de que nós o tivéssemos feito e saía voando, caindo, rolando pelo tatame. Um artista de circo.
Exigi minha retirada imediata da academia, contando para meus espantados e desapontados pais que o filho deles não era um lutador em botão, mas, pelo menos, também não era um aprendiz de trambiqueiro.
Só me restou abraçar a literatura como brincadeira e horizonte de vida, e fazer das palavras a minha alegria, com a qual podemos dar saltos mais mirabolantes e verdadeiros do que as traquinagens daquele mestre 171.