Histórias do Alvito
COMO A LITERATURA SALVOU MINHA VIDA
Foi puro acaso. Vivi minha adolescência numa das décadas mais loucas da história da Humanidade, os anos 70. Os garotos, eu incluído, usavam sapatos chamados de “Cavalo de Aço” com solas de borracha bem altas. Era o mesmo nome de uma novela da Globo que acabou por lançar aquela moda. Era um sábado à noite e eu estava para lá de feliz indo para uma festa no meu prédio. Onde só tocaria música americana, porque música brasileira nem pensar, era coisa cafona, como se dizia. Saí de casa aos pulos, saltando para tocar o teto. Caí de mau jeito e quebrei o pé.
Como assim? Férias sem jogar futebol? Eu era alucinado por futebol. Meu pai, sempre ele, sugeriu:
– Por que você não lê?
Em seguida ele me deu um dinheiro para ir até a banca de jornal onde comprei uns livrinhos de faroeste impressos em papel jornal. Muitos anos depois, vim a saber que eram todos escritos por brasileiros, muito mal pagos, por sinal. Talvez isso se refletisse na qualidade da escrita, não sei. Só sei que mudei para uma coleção de espionagem. Eram dois detetives: KK7, o homem, e ZZ7, a mulher. Os dois eram lindos, charmosos e inatingíveis. Enquanto desbaratavam quadrilhas e mais quadrilhas que pensavam em acabar com o mundo, viviam em uma sedução eterna entre eles que nunca se concretizava. Trama perfeita para um adolescente e seus hormônios fumegantes. Mas logo eu estava lendo uma historinha por dia, perturbando o jornaleiro pelas novas edições e o meu pai por mais dinheiro para comprar as revistas.
Meu pai resolveu que era chegada a hora de eu começar a ler feito gente grande e me apresentou ao romance policial. O Arqueiro verde, um clássico de Edgar Wallace, foi uma bela escolha. Depois veio Agatha Christie, que todos conhecem. E aí, pronto… Quando fui ver, nas férias seguintes o pé já estava bom do pé mas não quis mais saber de futebol. Passei as férias inteiras trancado em casa lendo. Para não quebrar as finanças paternas e maternas, associei-me a uma espécie de clube de aluguel de livros. Eles te mandavam um catálogo, você pedia por telefone e no dia seguinte a obra estava na tua casa. Tinha vezes em que lia um livro por dia. A sorte é que não cobravam por livro, pagava-se uma mensalidade. Minha vida social se resumia a telefonar para um amigo que fazia a mesma coisa para trocarmos comentários, ideias e sugestões. Ainda não havia a expressão off-line. A vida era off-line e a gente nem sabia disso.
Por que a literatura salvou a minha vida? Eu era tímido demais para conversar com as meninas. E exigente demais para conversar com os meninos. Havia um livro de redação daquela época, com belas fotos destinadas a despertar a escrita e o sonho. Tinha capa laranja e chamava-se Criatividade. Lembro da foto de uma escada e da exortação a se escrever o que havia além dela, aonde ela levava. Ainda hoje penso nisso. Em uma das redações que fiz no livro desenvolvi a teoria de que eu era um ser de outro planeta, mais especificamente um marciano. Gostava e gosto ainda de ficção científica. O texto, inclusive, era redigido em língua alienígena. Quem teve adolescência complicada vai entender.
A literatura foi uma fuga do ambiente tacanho em que se vivia durante a Ditadura Militar. Eu “nasci” e me formei como indivíduo naqueles anos de isolamento voluntário. Foi nesta época, por exemplo, que li Zorba, o grego, de Kazantzakis. Sem saber, aquele livro me vacinou contra o pedantismo e, paradoxalmente, contra aqueles que acham que os livros podem estar acima da vida, da experiência de quem arrisca a própria pele, de quem não tem medo de viver. Eu aprendi a não viver só de livros lendo um livro.
Cito de cabeça uma das histórias. Zorba conta ao “doutor” que durante muito tempo viveu atormentado pelo desejo de comer morangos. Por serem muito caros, ele só conseguia comprar pequenas porções da fruta, vivendo insatisfeito. Um dia, Zorba resolveu acabar com esse fantasma. Ao sair seu salário, gastou tudo em uma montanha de morangos. E ficou comendo morangos o dia inteiro. Até passar mal. Até enjoar. Até vomitar morangos. Até nunca mais ter vontade de comer morangos. Pronto, explicou Zorba, agora eu estava livre dos morangos.
De início a literatura foi um refúgio, um bunker feito de palavras e histórias, uma ilha de sonhos em meio a um mar de mediocridade e violência. Foi uma mãe acolhedora e sábia. Aos poucos, deu-me coragem para sair do seu abrigo.
E me convidou a abraçar a vida.