Histórias do Alvito
CONFESSIONÁRIO EM QUATRO RODAS
Devo ter cara de padre, jeito de psicanalista ou talvez seja um resquício dos meus tempos de antropólogo. O fato é que eu não posso entrar em um Uber ou em um táxi sem que o motorista comece a me contar uma versão compacta de sua vida, de suas dores, feitos, fracassos, amores, obsessões e por aí vai. E não pensem que os submeto a um interrogatório, limito-me a uma saudação simpática, a uma observação solta aqui e ali. De resto, sou todo ouvidos, pois não tenho muita escolha.
Darei apenas três exemplos de muitos e muitos.
No dia mesmo em que escrevo, um corpulento motorista contou-me da mania de sua mulher em dormir muito e chegar atrasada, falou do tamanho dos pés de seu filho de cinco anos, um pestinha infatigável, cuja foto ele fez questão de me mostrar, acrescentando que o menino, de acordo com os tempos que correm, vive a pedir para ser fotografado. Não pensem que nada tenha dito sobre si próprio: além da jornada de doze horas diárias no volante, exibiu um calombo no braço esquerdo que o castiga com uma literal dor de cotovelo. Além de me explicar, é claro, detalhes do procedimento cirúrgico necessário.
Mais original foi o rapaz que me falou da sua carreira interrompida de jogador de futebol, iniciada nas divisões de base do CSA de Alagoas e que mereceu estágios na Dinamarca e em clubes do interior de Santa Catarina, onde ele casou e separou duas vezes, a última com uma advogada. Essa corrida foi no dia da fatídica tragédia da creche de Blumenau, mote para ele falar dos filhos, da saudade que sentia deles e da preocupação depois do acontecido. Claro que também houve detalhes veramente futebolísticos como a transformação dele: antes atacante (— Eu era rápido, fazia muito gol), em volante marcador.
A minha preferida, todavia, é esta. Um cinquentão com pinta de mauricinho (cabelos penteados para trás, uma gomalina discreta), abre o jogo de cara: — Hoje eu sei que é possível ser feliz com muito menos. E não se faz de rogado para explicar. Era empresário, dono de um baita restaurante que naufragou. As dívidas se acumularam, ele perdeu todos os bens, exceto uma Harley Davidson que escondeu no sítio de um amigo. Restou a ele o trabalho no volante. Casou com uma mulher mais jovem, negra e evangélica. Que lhe deu uma enteada de sete anos que o ama, segundo ele, como jamais ele foi amado nem amou nesta vida. Vira para o passageiro (euzinho) e diz, com os olhos meio mareados de emoção:
— Eu sou feliz.
Quem sou eu para duvidar?